quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O mendigo

Era uma vez uma rua de uma cidade. A rua tinha o seu nome próprio, mas há muito fora substituído pelo de uma personagem bem menos importante do que aquela que inscrevia o seu nome nas placas de azulejo coladas ao longo dos prédios da rua. Essa personagem era um mendigo, pelo que a rua era conhecida como "A rua do mendigo".
O pobre homem que vivia na rua do mendigo pouco mais tinha que a própria rua; na verdade, aparte de uns farrapos que lhe cobriam o corpo manchados de frio e dificuldades, possuía apenas a alegria que a música lhe dava. Sim, porque cantava. Sentado, encostado a um dos edifícios, o ar miserável do mendigo desaparecia no momento em que decidia entoar qualquer canção. Da figura cinzenta logo destoavam olhos que brilhavam, mais que as estrelas do céu. O momento mágico durava até a vista ser-lhe inundada por grossas lágrimas, que antecediam o interromper do canto. Isto ocorria várias vezes ao dia, o que de qualquer modo não parecia afectar positiva ou negativamente os peões que por ele passavam. De facto, ninguém sequer parara para ouvir o que tinha o mendigo para dizer de tão alegre e comovente, como se aquelas palavras que saíam debaixo da sua tarefada e importante vida fossem estrangeiras, vindas de um simplório pedinte demasiado livre para ser considerado.
Mas o mendigo cantava, dando à plateia indiferente a mesma importância que lhe davam a ele, quase nenhuma. E a rua do mendigo era assim pintada, com o seu mendigo e dezenas de outros mendigos, os tais que não ligavam nenhuma ao que tão mal se vestia e tão sujo se apresentava. Pobres de alegria, de identidade, de música. O mendigo era o mendigo, até a rua adoptara o seu nome, agora os outros não passavam disso mesmo: os outros.
Até que um dia o mendigo desapareceu. A rua de pedra e betão ficou ainda mais cinzenta, e mesmo raiando o Sol, ali chorava-se. Mesmo as pessoas que ali vagueavam sentiram a falta do homem, faltava música naquela rua, faltava a voz grave e sentida do pedinte. E dando-lhe valor que nunca lhe deram quando presente, perguntavam-se: "Que será feito dele?", "O que cantaria?", "Afinal porque era mendigo?". Logo vozes sábias de quem pensa saber se irromperam, dando biografias ao pobre homem; que era simplesmente pobre e cantava para se aquecer, que perdera tudo num incêndio e ficara maluquinho, coitadinho, que cantava porque fora um músico cuja carreira falhara e acabava por chorar porque tinha uma inflamação nas anginas. De tudo se disse. Houve alguém, talvez mais poeta, que disse que se apaixonara, e por perder quem amara enlouquecera. Cantava versos de amor, que logo lhe lembravam a sua musa e o faziam chorar, lagrimar de olhos que sabia nunca mais poder colocar sobre a figura da mulher. Talvez fosse essa a verdade, talvez não. Nunca se soube.
Mas há quem jure que o mendigo ainda vagueia pela sua rua, à procura do que perdera, e nas noites de mais magia, é possível ouvir o canto do homem trazido pelo vento.

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