quarta-feira, 30 de maio de 2012

O último adeus

Os 72 anos do Sr. Maximino Gomes não quiseram chegar aos 73. O Sr. Gomes, como era conhecido neste pequeno mundo da esquina do meu prédio, era o comerciante mais simpático da mercearia que pertence ao edifício da minha casa, simpatia que o deixava ver acima dos outros, apesar da sua corcunda já generosa. Não quero estar com falas mansas e escrever linhas de dor, afinal de contas, não me dava assim tanto com ele para sentir tristezas como as que por aí se vêem por cantores que entraram para os coros celestes e que de repente todos passaram a apreciar. Adiante.
Por uma questão de respeito, e para acompanhar a minha a minha mãe que, essa sim, se relacionava um pouco mais com o Sr. Gomes, fui ao seu velório. Percebo melhor os velórios que os funerais; um funeral é pintado de dor e de memórias apenas boas, mesmo que más houvessem, enquanto que os velórios são o adeus mais demorado e sentido e ainda que a alma tenha já partido para de onde veio, é legítimo que seja do corpo que nos despeçamos de vez, esse nunca mais o veremos, a alma, a alma ninguém sabe. Espero que sim, que lá nesse Céu que ninguém sabe o que é ou onde fica possamos ver todos e fazer tudo.
A capela mortuária tinha o cheirinho agradável a flores e a Igreja velha e a lágrimas sentidas, umas mais que outras, temo. Cumprimentei os familiares que conhecia das lides do "Era um café, por favor" ou "Bom dia Sr, Álvaro, como vai?". Da minha boca não saíram "os meus sentimentos" ou "os meus pêsames", defeito meu este de não conseguir dizer chavões inventados por alguém e que ambicionam oferecer por palavras aquilo que se dá em olhares, abraços, pensamentos e vá, lágrimas, se bem que também estas teimem em não sair pelos olhos (hei-de um dia perceber se sou mais insensível que os demais ou se apenas vendo os meus sentimentos um pouquinho mais caros).
Sentei-me. Choro aqui, conversa ali, e as memórias da esposa, que animada tanto quanto a situação e o local o permitiam lembrava o Sr. Gomes e o modo carinhoso como era tratado pela minha irmã, "Sr. Gominhos". Espero que um dia, no meu velório, as pessoas sejam obrigadas a conter o riso por meio de lágrimas enquanto lembram as minhas piadas, os meus disparates, o modo simplista e descontraído com que levo esta vida que todos teimam em carregar quando deve ser ela a a carregar-nos a nós. Mas estas linhas não são sobre mim, portanto avancemos.
O momento que me tocou surgiu quando entrou o Sr. Marcelino. O Sr. Marcelino, percebi depois, era talvez o melhor amigo do Sr. Gomes, daquelas amizades à vinho do Porto que dispensam os "Oh, gosto tanto de ti meu melhor amigo" e os "Amo-tes, és super importante para mim". Não, as suas declarações de amizade eterna baseavam-se nas idas do Sr. Marcelino à mercearia, logo pela manhã, para conversar com o seu camarada sobre tudo e mais alguma coisa, isto numa época em que pela manhã as pessoas mais idosas encontram muitas vezes como única companhia o Goucha e a Cristina.
O Sr. Marcelino entrou e, mal olhando para o local onde o corpo se encontrava, coberto por toalhas de linho, começou a chorar. Mas o seu choro dava dó; devido à sua avançada idade, o Sr. Marcelino não era capaz de soluçar como os outros. Normalmente, quando alguém chora desalmadamente, saem guinchos e gemidos em jeito agudo, doloroso, mas da boca do velhote amigo apenas saía uma respiração longa, cavernosa, vinda bem lá do fundo do coração. Parecia atacado por uma rouquidão imensa, e o seu choro mais parecido com tosse que outra coisa saía de cada vez que ganhava forças para novamente o soltar. O filho, preocupado com a saúde debilitada do pai, ciente de que emoções demasiadamente fortes poderiam deitar o pai na mesma cama que o Sr. Gomes, reconfortou e conduziu-o ao banco. Quase a sentar-se, o Sr. Marcelino fez um esforço hercúleo e avançou, como quem avança contra uma forte rajada de vento, até ao caixão. Destapou o pano que cobria a face e que muitos removem pela curiosidade da morte e nada mais, e olhou para o seu amigo. Aquela cara que antes sorria e lhe contava as novas da crise e do desporto, estava ali, branca e rígida, e assim ficaria, para sempre. O choro do homem, se antes era já profundo, assumiu ali um nível que não conseguirei escrever. Parecia um animal ferido, as fendas dos olhos confundiam-se com as longas rugas do seu rosto, e mal consigo imaginar o uivo que teria saído da sua boca se ele o conseguisse soltar. Uma outra senhora, que não percebi se era familiar ou não, insistiu que ele saísse, falando para ele como se tudo aquilo fosse reprovável. Legitimo o medo da perda de mais uma pessoa querida, mas sinceramente tudo aquilo me estava a custar engolir; a dor mais sincera, o adeus mais preciso, estava a ser reprimido de um modo cruel. Ninguém perguntou ao Sr. Marcelino com quem ele iria ter na manhã seguinte, que sentido teria a sua vida agora, ninguém ponderou se ele desejaria, de facto, acompanhar o Sr. Gomes, ou melhor, se uma despedida digna a demorada valeria o risco de isso acontecer. Eu respondo por ele, claro que sim.
O Sr. Marcelino lá saiu, para voltar pouco depois. Tentou destapar o lençol que cobria mesmo a carne do corpo, provavelmente para o beijar ou acariciar, mas mais uma vez foi impedido pela tal senhora. Que nojo! A mulher que ali estava sabe-se lá porquê, talvez por coscuvelhice e "Sim, eu gostava muito dele, nossa senhora, que tragédia", impedia que uma amizade sincera pudesse ser dignamente interrompida. O velhote ainda a tentou afastar por meio de gestos, mas neste mundo os sentimentos sinceros ainda muito dificilmente têm mais forças que as vontades alheias, fisicamente vigorosas.
O Sr. Marcelino saiu e voltou terceira vez, agora mais comedido, ciente que se "exagerasse" na dor seria novamente repelido. Limitou-se a aproximar do caixão, destapou a cara do Sr.Gomes e olhou para ele por breves segundos. Antes que mais uma vez fosse expulso, tapou-o e virou costas. Estacou no meio da capela, olhando primeiro para o chão e depois para o céu. Talvez estivesse a perguntar a Deus com quem comentaria agora o jogo de ontem, ou a menina jeitosa passava ali na rua. Ou talvez conversasse com o Sr. Gomes, ralhando com ele por meio de soluços. Ou então, se calhar, mirava a sua próxima morada, questionando-se se lá encontraria o seu amigo. Porque cá por baixo, as manhãs nunca mais serão as mesmas para o Sr. Marcelino. 

domingo, 20 de maio de 2012

As aparências iludem

Entrei e lá estava ele. Arrogante, altivo, com um olhar de desdém que me empurrava para uma linha abaixo, muito abaixo, da dele, ainda que a sua vista encarasse a minha de frente. Grande parte dessa atitude devia-se ao facto de vestir a mesma roupa que eu, a roupa que deveria mostrar a sua pretensa superioridade, mas bolas, nem os sapatos. Desviei o olhar e ele fez o mesmo, como se o magnetismo invertido nos empurrasse para outras paisagens mas não para outros pensamentos; quem era ele para me olhar assim? Quem lhe dera a ele ser como eu, beijar-me os pés que pisar o chão que eu piso com os pés que certamente caminharam mais que os dele. Horrível este exercício de julgamento sem provas nem advogados e com um juiz apenas, o da circunstância. Odiei-o pelo facto de me mostrar ódio e asco. Olhei-o de novo. A chama raivosa bailava-lhe na íris, ah, que fúria a minha, mas quem é este ser que arranca a predisposição de amar da essência humana para me querer mal só por querer ser maior que eu. Não me contive, cuspi-lhe na cara. Sujei o espelho.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Da escada

A brisa que bate na janela é de ventos de maio, mas não sei em que mês estou. Nem quem sou, nem de onde venho. Sei tanto quanto sabia quando nasci, quem me dera ter sabido mais nessa altura. É que agora, nem respirar. Estás de frente para mim e nem no Japão estarias mais longe. Na cozinha, os nossos amigos riem descontraídos, quando a vida pouco pesa, a gargalhada é fácil. E tu, sorris porquê? Nesta sala quente e castanha, levas-me por tornados frios de cores e mal sabes tu que o sofá é para mim um tapete voador e os teus olhos quarenta ladrões. Dizer-to, eu, nunca. Para se dizer alguma coisa a alguém, em segredo, é fundamental que o seu ouvido esteja à altura dos nossos lábios e há muito que percebi que, não sendo tu mais alta que eu, estás muito, muito acima. O amor é uma escada que nem desde nem sobe, ou melhor, pode subir e pode descer, não importa, apenas importa que quem nela caminha pise o mesmo degrau, por mais parco em espaço que ele seja. Se for mais acima, pode tropeçar, se vier abaixo, não vê nem quer o mesmo. Eles voltaram à sala, façamos o brinde. Se é maio, parece-me janeiro, esse que vê o velho e o novo. Eu não vejo nada, ou talvez veja demais e pouco possa tocar. Beijar.