segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

No fim, para o princípio

Um sujeito idoso, enfermo, encontrava-se no seu leito e, a custo, escrevia a caneta num papel antigo, bege. A missiva dizia assim:

Ainda aqui, 7 de Janeiro de 1998

Querida Marta,

Sabes que nunca fui de escrever muitas cartas, a doença-preguiça de que sempre padeci nunca mo permitiu muito. Talvez por isso tenha tanto para dizer, agora, agora que estou a morrer. Por isso estou a escrever isto, o que antes me impedia de fazer algumas coisas parece agora ridículo, sem sentido, como se a vida que agora acaba já tivesse efectivamente acabado e o mistério residisse no que passou, e não no que vem aí.

Mais do que um último capricho, este manuscrito é uma necessidade, preciso de falar. Domina-me a nostalgia, a saudade, só espero que, depois de chorar com o que vou rever, sorria uma última vez e feche os olhos. Seria algo dramático, mas até que dava jeito! Sabes que sempre temi isto. Não a morte, isso não me preocupa muito. Isto, agora, a velhice, chegar aqui demasiado depressa, passar pela vida sem a respirar, comer, beber, festejar, sem a sentir, saborear. Correr e deitar-me nela, sentir uma dor que seja que me diga que estou vivo. Como uma criança que cai e esfola o joelho, chora, mas depois tem na ferida um distintivo muito mais poderoso que aqueles da polícia, um crachá que lhe dá o direito de dizer que vive.

Lembras-te, Marta, quando éramos essa criança? Nem eu era menino nem tu menina, éramos crianças, sem género, porque tu jogavas à bola comigo e eu brincava aos cabeleireiros contigo, o amor para nós eram flores e borboletas, coisas de crescidos não eram mais que uma coisa estúpida que assaltava a televisão e nos tirava os bonecos, pelos quais sabíamos que valia a pena acordar cedinho, quando cheirava a pão e café. Lembras-te Marta? Depois crescemos e fomos para a escola, um mundo novo, enorme, entrávamos ali e éramos os reis do mundo. Ali, na primária, aprende-se tão mais que o ABC e o 123. Ah, o que eu não dava para redescobrir os achados que ali fizemos! O mais importante, talvez, foi o que estava para além das borboletas e das flores do amor… Andávamos de mão dada e dizíamo-nos namorados, sem saber bem o que era. Mas sabia tão bem! Lembro-me que até me esquecia do meu pão com manteiga na sala na ânsia de ir ter contigo, porque mais que matar a fome, queria era colar-lhe por cima aquele bichinho que sentia quando te via, aquela impressão na barriga, aquele bater acelerado de coração.

E depois separámo-nos, porque tiveste que mudar de casa, para longe. E eu continuei, durante muito tempo, sem comer o meu pão com manteiga, não com pressa de ir para o pátio, porque esse era agora da cor de um filme do Charlot, mas porque nem fazia sentido. Mas o tempo foi passando e veio a escola nova, novos amigos, depois a secundária, e novos amores, mas na verdade nunca te esqueci, porque nenhum me dava aquela sensação na barriga que tu me davas, e que tanto procurei.

Depois, numa altura em que já tinha baixado os braços, desistido de te encontrar, a ti e ao amor, reencontrei-te. Lembras-te Marta? Eu lembro-me, como poderia esquecer o momento mais feliz da minha vida? Numa das voltas a que a vida obriga, lá estavas tu… Eu tinha acabado de perder um comboio, e tu a fazer uma viagem que, disseste-me depois, deverias ter feito no dia anterior, mas não puderas porque algo te tinha acontecido. Disso já não me lembro Marta, lembro-me sim dos teus olhos, sorriso, do tom da tua pele, do teu cheiro, e lembro-me do meu coração bater a uma velocidade tão grande que não sei como não parou. Talvez porque tinha encontrado a única razão pela qual sempre bateu.

E ficámos juntos Marta. Foi difícil, uma relação de longas distâncias, mas felizmente existem milhentas coisas que as encurtam, principalmente o que sentíamos, só o que sentíamos. Ah, tivesse durado para sempre, e agora, antes de morrer, estaria a sussurrar-te ao ouvido um poema, não de despedida, mas de outra coisa qualquer, talvez flores e borboletas!

Mas não durou. Meses depois e tivemos que nos separar outra vez, de vez. Tu lembras-te Marta, tal como eu me lembro, todos os dias da minha vida, sempre que me lembro de ti, a cada hora, minuto, segundo, cada respiração.

Há pouco mais de uma semana soube que tinhas feito uma grande viagem, a mesma que estou prestes a fazer, sei que estou. Vou ter contigo Marta, sei que agora sim, e sei que agora nada nos vai poder separar, e estou ansioso, muito ansioso. Não sei se para onde vamos podemos falar, não sei quais as regras lá de cima. Por isso, esta carta, vai comigo, para que ta possa entregar, em mão.

Sabes, sempre tive um desejo em relação à morte; gostava que, ao chegar lá acima, pudesse escolher uma idade. Por isso é que eu não a temo Marta, imagina só o bom que seria chegarmos lá acima e voltarmos a ser aqueles meninos que ao entrelaçar os dedos da mão entrelaçavam sonhos altos, dores incompreendidas, emoções gratuitas de valor incalculável. Esta carta deixaria de fazer sentido, até mesmo para mim, mas não faz mal. Só quero estar contigo Marta. Nem me interessa que seja no Paraíso, porque vai ser. Porque quando tu sorrias até aqueles dias de frio e chuva que eu não gostava nada eram de Sol e sonho.

Sinto que está quase Marta, e o coração parece, nestes últimos minutos, recordar as batidas de uma vida bastante longa. Este sono será normal? Mal mantenho os olhos abertos, será q…

A caneta rolou da cama e caiu com um baque no chão. O velho fechou os olhos e, como se os abrira, sorriu. Estava no Paraíso.

5 comentários:

  1. sem palavras :x
    Adoro este texto...
    Simplesmente é fantástico, conseguiste descrever o necessário para se compreender tudo. e que ela já estava morta, conseguiste esconder bem :O

    Parabéns!

    ResponderEliminar
  2. omfg , está tão puro , tão profundo , tão .. nem tenho palavras .
    Adorei !
    Vou seguir :$

    ResponderEliminar
  3. Aquele que amo encara-me como uma simples amiga , nem sequer sou das pessoas mais importantes da vida dele , sinto-o :x Este é o alguém que se duvida me faz esquecer os pães com manteia , me faz esquecer tudo aquilo que não importa quando está por perto , simplesmente eu não provoco isso nele ...

    Que tenha muito sucesso o teu blog :)
    ah e obrigada pelas palavrinahs (:

    ResponderEliminar
  4. Anónimo14.9.10

    Uma só palavra : Mágico

    sofiafurtado

    ResponderEliminar
  5. Olá. O meu nome é Marta : )

    ResponderEliminar

Comentários