segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Do tempo

Tic Tac, Tic Tac,
Irreal, flui o tempo
Com o passo de quem foge

Tic tac, tic tac,
Avança e num momento
Cai o ontem, o amanhã, o hoje.

Tic tac, tic tac,
Irmão da foice letal,
Cunhado da saudade, interesseiro

Tic tac, tic tac,
Alguém ponha um final
Cale-se de uma vez, vivamos sem ponteiro.

Mas ele Teima e Continua
Ele Tem-nos à Condição.




domingo, 6 de outubro de 2013

O meu cão

O meu cão não faz muitos truques. O meu cão não responde a qualquer das indicações que aquele senhor que é encantador dá no seu programa. E lá aprendeu a sentar-se mas nunca sem se deixar invadir por uma alegria própria de quem sabe que vem aí recompensa. Uma alegria frenética, porque o meu cão é frenético. Se não receber festas e coçadelas durante um determinado período de tempo agarra em tudo o que for calçado ou almofadas até receber a atenção devida. Os passeios na rua são esgotantes, porque o meu cão acha que deve abordar todos os outros a ladrar e a correr, parecendo agressivo sem de todo o ser. Até porque ele convive diariamente com dois gatos, um deles anão (anã, é a Nala, que tem meses) e é o único que eventualmente aparece arranhado. Na verdade, acho que o meu cão só tenta mesmo fazer mal a moscas, mas nunca foi bem sucedido. Sempre que chego a casa, sinto que cheguei de uma longa viagem - e para ele um dia sê-lo-á decerto - tal é a alegria com que me recebe. Para onde eu for ele vai, se não vier, basta que o chame. O meu cão não sabe muitos truques, mas conhece o maior deles todos. (Os cães devem ter sido criados depois dos homens.)

sábado, 5 de outubro de 2013

Poder

Porque a pena é mais forte que a espada
Mais forte, mais tudo, mais que tudo
O resto, que o escudo, que a montada!
Eu tenho o poder
De poder
Dizer, como quero e me apraz
Tudo aquilo que o mundo é,
Tudo aquilo que o mundo faz,
E não faz, não sendo.
Invento crio sou pai escrevendo
De coisas de um sítio
Que este Sítio não tem
Porque não convém sonhar.
E como o pintor,  escultor,
O músico,
Eu vou pintar, moldar,
Cantar,
Cantos mudos que berram
Para quem sabe ser certo
Ouvir ouvir o escrito
E esses não erram,
Decerto.
Disserto dizendo e rimando
Bebendo de um oceano
Que quanto mais saceia
Menos se vai vazando
E mais quer saciar.
E jorra ódio e amor,
E raiva e paixão
Porque não há dia ou noite
Nem sim nem não
Apenas um cordão cinzento
Que se entrelaça mil em cores
Dando-me no papel
Os meus filhos,
Os meus amores.

O meu poder.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A velha

A velha olha-me do cimo do monte
E eu vou, refém, subindo.
Sempre em frente, de baixa fronte
Não olhando, mas sempre indo,
Indo...

E a velha chama-me sem falar
Sem se mexer, porque o faria?
Sigo, seguimos, todos a andar
Dia e noite, noite e dia,
Noite e dia...

Ah, olhar para trás sem poder descer!
Chutando umas e trepando demais
Pedras, cansado, ilusórias paragens a haver!
Cada vez mais alto, e mais,
E mais...

Mas chegarei como quiser, desejo meu,
O quando decide quem não vejo
A cada passo traço o caminho, só eu,
Até lhe dar o derradeiro beijo,
O beijo.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Quando for pequeno

O meu filho perguntou-me o que poderia ser quando crescesse. Claro que lhe falei das várias profissões prestigiantes, das que nos deixam comprar casas, carros, sustentar bem uma família. "Eu, por exemplo, sou médico, não gostavas de ser médico, pequeno?", perguntei-lhe. " Ser médico é fatela!" Não fiquei triste com a resposta dele. Ou melhor, fiquei, mas não por ele não gostar da profissão do pai, mas sim porque, de certo modo, tinha razão. Ser médico é fatela. Claro que salvo vidas de pessoas e de muitas maneiras diferentes, seja com o medicamento certo, diagnósticos precisos ou simplesmente um abraço fraterno. Amo a minha profissão. Mas, na idade dele, pouco mais se pode pensar da profissão que essa expressão tão incorrecta quanto genuína. Fatela. De repente, sem conseguir explicar bem porquê, senti emergir em mim uma corrente de pensamentos, em mim que nunca coloquei nada em causa, eu que sempre planeei com frieza, eu que sempre andei com passos certos, eu que nunca me embebedei em romantismos e encarei a vida como algo unilateral, complicado, esforçado. Ser médico é fatela. Por muito rídiculo que possa parecer, e "rídiculo" é uma palavra que uso muitas vezes, dei por mim a pensar como o meu filho, a fitar o espelho e perguntar: o que ser então? Um desejo agonizante apoderou-se de mim. Queria ser mais, ou menos, não sei bem. Queria ser diferente. Queria mirar a grande orbe azul como nunca antes, moldá-la com o calor das minhas mãos, essas que sempre foram frias. Reparem, eu disse orbe azul. Porque não lhe chamei Planeta Terra? Por isso mesmo, porque quis ser Deus e começar pela criação, pintar o cinzento, derreter o gelo. Quis, envergonhado, atrevi-me a desejar, atrevi-me a deixar cair o asqueroso muro de pedra que tinha na alma e que me impedia de ver. Eu só olhava! Como o mundo podia ser diferente, pensei eu. O que tenho feito que não as imposições de alguéns que não eu? Senti um enorme nó na garganta, quis chorar, quis rir. Não de tristeza ou de felicidade, apenas porque tinha emoções fechadas e soltara-as como quem abre a caixa de Pandora. O meu mundo caía e eu com ele, livre como um pássaro. Quis fazer algo inolvidável, que fosse para sempre, que deixasse o meu nome gravado na pedra. Naquele momento, eu não sabia o que queria ser quando fosse grande. " Sê o que quiseres filho, o barco é teu, comanda-o sem mapas, se um sítio tem mapa é porque já foi descoberto. Vai mais além." Claro que não percebeu nada, mas como poderia ele, se eu só o percebera tanto tempo depois?

terça-feira, 5 de março de 2013

Sete

Primeira pista está acima
A resposta, abaixo vai estar
Do génio humano são matéria prima
E em estrofes se vão dissecar.

Alimenta a solidão
Varre para longe a amizade
A fortuna a um só
Resume o amor a pó
E torna a morte cedo verdade.
Zela não por céu, mas por tecto
Ah, o que será, em concreto?

Irrompe em chamas, zangado
Rasga tudo, sem pudor
Amante do caos, atribulado.

Gasta a alma em excessos, come tudo
Um não chega, nem dois nem três
Longa vida ao Entrudo
A época ideal deste que aqui lês.

Lagos, jardins, casas de ouro
Última morada antes até da morte escrita
Xailes chineses tapam um corpo a soro
Uma vida de amor proscrita.
Reles a este mundo gratuito visita
Irmãos de plástico, fingidos
Amigos de fato, como nus tidos.

Sabichão te achas, o número um
O topo de um mundo que espezinhas
Brindes a ti, palmas minhas
Enquanto afastas de ti a baixeza
Resta-te, penso, a certeza
Bacoca de que ninguém precisas
Até ao dia em que és batido por quem pisas.

Páras mais do que o que andas
Recostas-te, deixas o mundo girar
E aquela viagem a Madagáscar
Guardarás na lista do quase que foi
Um desperdicío de ar, vive mais um boi!
Imaginas, mas levantar não
Carregas o comando da vida contigo
Ah, não desse tanto trabalho carregar no botão...

Vai-te passeando, belo Narciso
A figura sempre luzidia
Irmão da beleza do dia
Do brilho do sol!
Admiras-te, o dia todo se preciso
Deixa-me lembrar-te que até o mais belo isco
Esconde, em si, um anzol. 

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Vive

Não sejas ignorante.
Porque é que vives sem saber?
Se nada sabes é porque nada queres
Bebe tudo quanto puderes
Afogar só quando morrer.

Almeja mais do o que vês
O mundo vai além do que é normal
Acelera, não traves, faz a curva
E se tiveres a visão turva
Pede uns óculos pró Natal.

Mentem-te com cada dente
Quando maravilhas numeram sete
Num globo azul vibrante
A beleza é um disco gigante
E só conheces uma disquete...


E se te tentarem vestir
Um colete à prova de vida
Vive, foge, mata a cobra
Tens em ti força de sobra
Não a deixes num canto esquecida.

Não és só uma gaveta de um móvel
Nem um tijolo de um casarão
És um todo, nasce, à carga!
Lembra-te que a batata só é amarga
Porque floresce debaixo do chão.

Deixem-se as cadeiras e os quentes
Cimento só é triste sina
O frasco do viver é apertado
Mas se vês o caso mal-parado
Porque não inventas vaselina?







domingo, 24 de fevereiro de 2013

O Barracão

As mudanças estavam já a acabar, finalmente. Mesmo depois da compra da vivenda, processo que só por si demorara imenso, só agora é que David começava a sentir aquela casa como sua. Ainda não era um lar, os caixotes eram pilhas indefinidas, não havia calor, cor, o ar não tinha qualquer peso. Mas estava tudo ali, pronto a ser amado. Andou pela casa; a sua calculadora mental adicionava móveis a espaços, tapetes a chãos, candeeiros a tectos. Será que cabia, será que não? Como um pintor, recheava as paredes mortas de vida, e a volúpia sentida não era inferior à que os conceituados críticos sentem ao olhar uma tela que também na sua mente vai além dos traços desenhados para assumir uma sensação transcendente. E ia explorando; não que não tivesse observado bem a vivenda antes de a comprar, não, mas agora que lhe ganhava amor é que os olhos viam mais do que apenas olhar. Não é sempre assim? E cada vez lhe parecia mais bela, mais formidável, mais maravilhosa. Pela janela da sala viu o barracão que ficava na parte traseira da casa. Na altura da primeira visita o homem da imobiliária não tinha a chave do barracão, tinha-a perdido; sorriu ao lembrar-se do quão cretino e desleixado achara o homem, apesar de toda a sua simpatia, o que de resto o fez hesitar na escolha da casa. Uma relação que se fizera difícil, mas normalmente são estes começos que têm fins mais demorados, talvez inexistentes. De qualquer modo, o seu plano era demoli-lo para fazer uma piscina para o verão ainda longíquo, tanto que ainda nem se preocupara em pesquisá-lo, tinha-o mesmo esquecido. Com a curiosidade aguçada, resolveu finalmente ir ver o seu interior. Não esperava encontrar nada, toda a casa havia sido esvaziada e o barracão aparentava não ter tido muita atenção do anterior dono, que David não conhecera. Foi até lá, arrombou a porta e entrou. Um terrível cheiro a mofo obrigou-o a tossir intensamente, e a sair. Uma terrível constipação oferecida pelo inverno rigoroso dificultou-lhe ainda mais a respiração, e teve que sair para apanhar ar, ar esse que resolveu dividir com o barracão deixando a porta aberta uns minutos, aproveitando para ir buscar uma lanterna pois o pequeno compartimento não tinha qualquer janela e não lhe parecia que fosse electrificado. Quando se recompôs, tornou a entrar de lanterna em riste e... não estava vazio. No meio do barracão havia uma mesa de madeira antiga com uma máquina de escrever e um candeeiro a azeite, extremamente velho e gorduroso. Havia também uma cadeira, onde David se sentou, ainda espantado pela descoberta que fizera. O candeeiro, apesar de mal-tratado, parecia ainda funcional, pelo que o tentou acender com o isqueiro. Funcionou. A chama, inicialmente tímida, foi crescendo, e foi então que David os viu: papéis, dezenas e dezenas de papéis escritos forravam as paredes do barracão, alguns pendurados por uma ponta, outros já caídos. Que seria tudo aquilo? Olhando de novo para a máquina, calculou que tivesse sido dela que todas aquelas folhas haviam saído, e pela primeira vez reparou num outro papel também escrito que estava em cima da mesa, preso pela máquina. Pegou nele. Era um poema pequeno. Quando o acabou de ler, teve apenas uma certeza; o barracão não poderia ser demolido.

O Barracão

Olhos únicos da arte minha
Tomaste-me no peito
E foste a minha casa.
Aqueceste-me sem teres brasa
Eterna alma eterno leito
Dos dedos de uma mão que definha.

Restos de mim guardarás, de pé
Resistente ao tempo homicida
E caia um dia o teu tecto,
Não cairá nunca o afecto
De uma existência não comprida
Mas forte como a maré.

Se uma outra vista te ler
Ó barracão, que me foste lendo
Sabe que não será traição nem meu intento
E por mais que esse saiba o tormento
Não saberá o que de graça eu te vendo.

Porque um poeta a um só ama
Sem emoção noutro lugar conhecer
E foste tu a minha amada
O meu companheiro de caçada
E para sempre havemos de ser
Troçando da morte

                                         Que me chama.

                                                     M. B.
 
 
 

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Chuvas de Fevereiro

Olho pela janela a chuva que cai, impiedosa. Junto dos candeeiros assume um brilho especial, as gotas são donzelas numa pista de uma dança de ritmo monótono. Belo. Único. O seu som ao beijar o que quer que seja o seu fatídico amado embala-me, e entro em transe. Não me sinto mal nem bem, apenas apaixonado por aquilo que não é de ninguém. E ela cai, cai, cai. Quando quer, como quer. Indiferente a tudo, destrói, dá vida, espanca, namora. Vem o vento e ela vai, vinda das nuvens do véu azul, certa da origem e vagabunda de destino. Quero amá-la e ser como ela, coisas que não têm que ser diferentes uma da outra. Ah, ela é uma música silenciosa e um estrondo ensurdecedor, é meiga, arrebatadora, incómoda, confortável. Fazem relógios à prova de água, mas desde sempre a água foi à prova de tempo. Quero saber quando a posso beijar, quero saber onde ela anda, contar-lhe o que sinto, abraçá-la, tê-la, mas quem sou eu? Perante tamanha beleza sinto-me menos do que sou, baixo-me a uma realidade talvez menos mentirosa. Maldita, faz pouco de mim, bate-me na janela, despe-se perante mim ciente de que mais não posso que olhá-la, desejá-la. Gotas tão pequenas e uma chama tão grande. Leva-me contigo, deixa que sinta o que é existir sem ser, deixa-me encantar olhos e roubar corações, deixa-me ir, sem ondes e quandos. Não te vás embora, já foi, mas eu não quero, eu avisei-te, porquê?, sem porquês, só porques sim. Tanto mar e tanto rio, e nunca terei de ti sequer uma poça.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Não pára

Já não é a tinta
Nem o piano mudo
Apenas a carne que dança
Ao som da mente
Ao som de tudo.

Não há ponto de ligação
Ou pombo correio
Não;
Apenas a vontade,
Algum talento
E coração.

Morreu o esforço,
O dever,
O plástico.
O ofício de quem imortaliza
É elástico
E não pára de encolher.

Ah, o rio corre
E de encher não pára
O mar
E quando se pensa que o copo está cheio
Percebemos, que devaneio!,
Que foi feito para transbordar.

Inunda de ti o mundo teu
E o eco acaba por soar
Canta e embala
Canta e cala!
Depois de saber fazer
Saber que não há parar.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Criador

Por cima do mar
Um manto macio, a ser horizonte
Com o sopro vida dava
Um toque e o toque gatinhava
A planície fazia-se monte.

E fez o azul
E o sol
E a rosa
Fez poesia
Escreveu em prosa
E música que sem instrumentos
Se ouvia.

No silêncio.
As folhas falavam
Mudas, conforme o plano
Como foi que da harmonia
Se fez o globo insano...?

Do pó, do nada
Nasceu o espelho do Criador
Que pensa e ama e sente
Mas, ah, obra-prima doente
Também Cria, Dor.

Do mais alto pilar
Faz-se a sombra
A falha no absoluto amor
Mas atenção, não existe o frio
Apenas a ausência do calor.






domingo, 17 de fevereiro de 2013

48 horas

Dormi, e quando acordei tinham passado dois dias. 48 horas de sono, sono, essa pequena morte que a vida precisa... para viver. Se não existissem relógios, ter-me-ia levantado como se nada fosse, nunca adivinharia a pequena longa hibernação por que passara. Mas tudo está contado, e então sei que dormi dois dias. Até aqui, nada de fantástico, apenas de triste talvez, porque enquanto os meus olhos estiveram fechados a vida continuou ao seu ritmo e eu perdi partes do filme que bem vivido é uma curta-metragem. Com tanto descanso, passaram-se as horas acordado e o sono não chegou. Uma, duas, dez, vinte e quatro, quarenta e oito. Por fim, caí de novo na cama, depois de um longo dia. E de novo sonhei por dois dias. Não sei o que se passava, mas a minha nova rotina estava instalada, incompatível com a vida que os outros vivem. Os dias do calendário deixaram de fazer sentido, o relógio era um instrumento tosco, os meses eram seis e num ano meu os outros viviam dois. Não cheguei a perceber se vivia mais ou menos, sei que vivia diferente. Num mundo que corre acelerado, uma noite minha chegava para na manhã descobrir novas notícias que já eram velhas e descobertas já cravadas nos anais da história. Depois, conheci-a. Passei um dia com ela, um dia dela, note-se. E ela encheu-me. Encheu-me como o ar enche um balão, dá-lhe forma, sentido, vida. Um balão vazio acha-se tão balão quanto os outros, mas depois de cheio e atado nada mais fará senão rebentar, para sempre. E como o balão sobe, eu subi contigo. E vi tudo, num dia; do alto vê-se mais, o horizonte alarga-se, deixamos de perceber onde está o céu e é tudo tão pequeno que nos cabe na palma da mão. Somos reis de um reino sem gente, não é necessário povo para aclamar uma coroa tão natural, e que tão bem encaixa. Todos os verbos se conjugavam no plural, na primeira pessoa. Menos o verbo dormir. Chegou a hora de ela descansar e adormeceu. Pediu-me que dormisse a seu lado e eu disse que sim, sem lhe contar na minha condição peculiar, o meu duplo sono e o meu duplo dia. Toda a noite dela contemplei-lhe rosto sonhador, a sua cara de anjo. Onde estava, ninguém lhe podia fazer mal porque o mal simplesmente não existia. Era tão bonita, tão divinal, e ainda assim estava ali comigo, nos meus braços. Minha. Aos poucos aproximou-se a sua manhã... e a minha noite. Adormeci antes que acordasse. Sonhei com ela a noite toda, nada que me lembre, nada para além da sua presença. Como se o sonho fosse um espaço aberto ocupado por coisas aleatórias e naquele momento nada mais tinha vaga senão o seu olhar, os seus lábios, os seus cabelos. Quando acordei, ela não estava lá. Por certo adormecera noutro lado, no mundo normal onde o dia e a noite têm vinte e quatro horas e onde eu não mais pertencia. Procurei-a, claro, mas a minha jornada dava passos mais largos que a dela, e perdia-a. O meu balão, que subira tão alto, rebentara. Para sempre.

De Gizé

Olha para cima.
Queres subir?
Enche-te de força
Que a paixão a tua garganta retorça
Invade-te de ti próprio
Faz um grito de calma
Uma arma da alma
Inspiração como ópio.

Ninguém é por ti.
Se fosse, para quê viver?
Chora, berra, esperneia;
Emociona-te. Levanta-te. Faz bela a cara feia.
Se fores um peixe come uma baleia
O oceano está a ver
E nem o céu é o limite!
Faz com que Deus te imite.

Pensa, usa a mente.
Tens pernas para andar, portanto corre.
O tempo morre
Ninguém o socorre
Não fiques a ver.
O mundo é um quadro
Pinta a tela
Abre a janela
E voa...
Não respires à toa
Um dia vais não respirar.

Não dês tudo de ti,
Dá-te.
E se achares que é difícil
Lembra-te que o peão pode ser dama
Finta a vida, faz-lhe a cama
Um movimento e é cheque-mate.

Incomoda-te,
Olha para dentro,
Sente o choro, a dor, o frio
Ri com gosto, com amor, com brio.
Escreve, pinta, canta, enlouquece
E olha que de nada serve uma mão que aquece
Se o coração estiver vazio. 


quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Desorganização

qwertyuiopasdfghjklçzxcvbnm. Tenho todas as letras no meu teclado, arrumadas conforme um padrão partilhado por milhões de pessoas. E foram estas as letras usadas por Camões, Pessoa, Saramago, por todos e quaisquer escritores de maior reconhecimento. São as mesmas que eu uso, mas que tenho eu de diferente, ou que têm os escritores de menores linhas? Temos as letrinhas arrumadas, os dedos nas mãos, que falta? Desarrumação. É preciso olhar as letras enfiladas e dessarrumá-las, tirá-las no incómodo sítio, juntá-las com os seus outros grandes amores, namorá-las, casá-las num matrimónio verdadeiramente eterno e frutífero. Passar a paixão que vem de dentro até aos dedos e emparelhá-los com as teclas, ensaiar uma dança comovida e co-vivida, dar à luz uma pedra gravada que não será gasta nem pelo mais bravo mar. Porque o texto é uma arma tão forte que bebe daquilo que para tudo o resto é destruição, tornando-se forte e fortalecendo, inspirando, arrebatando. Um grande violinista não poderá tocar sem investir no instrumento, um escritor tem a matéria de graça, basta talento, e saber desarrumar. São mais valiosos os 20 cêntimos que encontramos no chão que o euro que sabemos estar na carteira. Desarruma, e no meio do entulho, encontra o tesouro. As tuas letras não são menos poderosas que as até agora escritas.