sexta-feira, 28 de março de 2014

Já não sei os passos da manhã

Já não sei os passos da manhã
As meias com que me beijava e aquecia.
A bruma desvanecia
Suavemente
E em mãos de lã
Me embalava
A mente.

E o silêncio é agora um estrondo
O sangue que me deambulava
Faz agora um mar redondo.
A paixão encontra-se nas pedras
Da calçada mudas...
Guitarras sem cordas
Gargalhadas sisudas.

Rasga-se a castidade que julgara já perdida
Comunga a carne minha com a terra
Há tanto de vida quando se vai a vida...!
Mas não há mais obra, afazer, lida,
Acaba a paz, não há mais guerra.

Não há nada
Mas eu vejo tudo, tudo!
A mãe, o menino, todos os primeiros
Tempos e tempos inteiros
E uma catapulta de madeira
Que me lança
Numa dança
Que pensei dançar
A noite inteira.

E eu vou
Sigo o passo morto
Já não torto
Porque sem corpo.
Há uma certa evolução
Na Esquina que se diz regressiva
Sou mais por nada ser
A antítese é agressiva
Tanto quanto o gelo quente
Que no meu não-eu
As garras suaves criva.

Negócio fechado, leva-me
Leve
A alma ferve, enternecida
Já não há casacos, já não há presídio
Livre-me o fim do livre ser
Já não quero mais nascer
Dêem-me o sopro pulsante
Do homicídio.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Final

Aconteceu caso inusitado em terras idas e tempos remotos. Um homem encontrou uma figura brumada num devaneio nocturno, na calada das estrelas. E a Morte deu ao Homem a sua cadeira, para que das dores dos dias descansasse ele e pensasse; e perdesse em pensamentos o controlo de si e mais não pense. Como um barco de papel, o Homem, sem mais lembrar do destino ou sequer do tempo, desfez-se por entre os negros mantos da mente, indo pela água sem forma, mas indo. E a Morte falou. Repulsa é o que me apraz perante quem passou a vida. Não por ter vivido, por não o ter. A obsessão dos anos germina da obsessão de os contar, um, dois, mais um, mais um, numa dança cega e mecânica, sem alma. Morta. A disparidade do viver já finado trouxe-te aos meus braços ainda o teu coração batia, devagar. Sempre devagar, divagar nas pedras seguras das regras protectoras, num colo que te protege do proibido, do risco, do perder o fôlego. Como não podias morrer, não pudeste viver. Não quiseste, porque algo tão quente como o querer te foi esquartejado do peito, porque não poderias saber o que querias, porque alguém tinha que saber por ti. O sangue que te banhava as veias sabia de cor o passo, numa marcha uniforme, uma mancha de uniformes. Agora, tu que tão alto subiste, cai, cai como todos, todos dos quais foste igual. Conquistaste anos ao tempo mas o tempo não existe, por isso cai, por entre os teus castelos e muralhas que se esfumam num fechar de olhos.