domingo, 10 de janeiro de 2010

Pode ser que o amor vença

Era uma vez um Pai que vivia numa casa alva, no topo de uma colina. Possuía vastas terras, para lá do próprio olhar, de Norte a Sul, de Nascente a Poente. De tão vastas e antigas, este Pai, que as fizera nascer, sobre elas perdera o controlo. Velho e cansado, já nem podia sair para as ver... só mesmo por entre as janelas tinha uma noção do que se passava nas mais próximas à habitação. Como um bom Pai, preocupado, quis sair da casa e ver o que se passava nas suas terras. Então enviou o seu Filho.
E o Filho foi, deixando o Pai ainda mais preocupado mas simultaneamente seguro de que voltaria e lhe descreveria tudo o que se passava nos seus territórios. O primeiro dia passou, bem como a primeira semana, mês, ano. O Pai, em casa, longe fisicamente do Filho, como que fora com ele e o acompanhava na larga viagem que empreendera. Mas os anos passavam. Após mais que trinta anos, o Filho voltou. Estava o Pai à janela, local que raramente largara, ansioso de vislumbrar a silhueta do seu Filho imprimida no horizonte, e eis que ela surge. Vinha cambaleante, quase que se arrastando, e demorou a entrar em casa. Quando o fez, o Pai viu que a viagem fora muito dura; para além de cansado, exausto mesmo, o Filho trazia mesmo feridas várias ao longo da sua pele, as roupas encontravam-se esfarrapadas, num tom escuro sujo, que todavia fora branco - como o faziam adivinhar zonas mais limpas do mesmo - mas, apesar de tudo, o Pai confortou-se ao perceber um sorriso nos lábios do recém-regressado. Destoava do sofrimento que o resto do corpo denunciava, mas estava lá, sincero, quente, luminoso. Logo o Pai o auxiliou num banho longo, deu-lhe de vestir, comer e beber.
Ao fim de tratar dele, o Pai perguntou: "Meu querido Filho, diz-me, por onde andaste, o que são agora as nossas antigas e vastas terras?" "Meu Pai", começou o Filho, "Andei por planícies verdejantes, quentes, onde haviam flores e pequenos animais coloridos, e andei por montanhas íngremes, de pedra dura, onde o frio cortava a vida e o nevoeiro mal deixava antever o passo seguinte. Andei rios de água cristalina sob os quais vislumbrei cardumes e algas várias, e andei por rios sujos e poluídos, vazios, mortos. Andei por praias cujo mar era sereno e belo, e andei por cabos onde o oceano furioso batia e destruía. Andei por jardins cuidados e harmoniosos, e andei por jardins cujas flores eram placas de pedra inscrita... rudes, inodoros, pobres."
"Meu Filho, diz-me, o que viste por essas terras?", "Amado Pai", começou o Filho, "Vi homens adultos que brincavam ao ódio, e vi crianças pequenas que sérias transportavam armas e sofrimento. Vi uma tempestade feroz, e vi uma aurora bela e brilhante. Vi quem viajasse em busca de amor e não saísse do lugar, e vi quem viajasse em busca de ouro e poder e errasse sem chegar ao destino. Vi paisagens violadas e pessoas corrompidas, e de olhos fechados vi cenários atraentes e pessoas que amavam. Vi pessoas grandes e vi pessoas pequenas maiores que elas."
"Diz-me Filho, o que ouviste pelas nossas terras?", "Pai", começou o Filho, "Ouvi músicas belas que eram doces ao ouvido, e ouvi e rugido de feras temíveis. Ouvi a chuva calma a encher oceanos e mares, e ouvi ventos que os revoltavam. Ouvi trovoadas fortes e inocentes, e ouvi tiros conscientes que matavam e feriam. Ouvi um bebé a chorar por colo que não tinha e outro que ria por o ter. Ouvi um homem a gritar e mil que gargalhavam tão alto que não o ouviam."
"Amado Filho, diz-me, quem por essas terras nossas conheceste?", "Querido Pai", começou o Filho, "Conheci uma mulher que me acolheu e me deu tudo de si, e um homem que me amparou a apoiou. Conheci um homem que me quis matar, mas conheci outros que dele me salvaram. Conheci pessoas humildes que me ensinaram imenso, e conheci sábios aos quais de muito iluminei. Conheci um homem que se curvou perante mim antes que eu me curvasse perante ele. Conheci pescadores aos quais dei redes e canas, e conheci uma mulher vazia de si que me deu um nascer do sol. Conheci pessoas normais que não viam, andavam ou ouviam, e vi mendigos e cegos e surdos que entendiam qualquer gesto ou palavra eu dissesse. Conheci pessoas ricas que não eram donas de nada, e vi pessoas pobres que não precisavam de coisa nenhuma. Conheci homens carregados que me obrigaram à sua carga, e homens dela livres que me ajudaram a transportá-la. Conheci mil homens que assim me enviaram para aqui, mil homens cuja vida salvei."
"Filho", começou o Pai, "As nossas terras estão agora muito diferentes. Não gosto do cinzento que agora as pinta. Há ódio e sofrimento, mais que amor e ternura. Homens sem coração tiram-no a quem o tem... sobre elas, sobre as nossas terras, vou lançar um grande fogo, às chamas só a nossa casa escapará. Choro pelo que de bom será destruído, mas tudo recomeçará e o mal será eliminado."
Após ouvir o Pai, o Filho levantou-se lentamente, beijou-o, e encaminhou-se para a porta de saída. Alarmado, o Pai perguntou: "Filho do meu coração, onde vais?" "Vou sair Pai, antes que o fogo comece. Vou voltar a tudo o que andei, vi, ouvi, conheci. Vou para o lado do que amei nestes anos, o próprio amor, o ódio, o choro, o sorriso, as crianças, os homens, a chuva, o sol, as planicíes alegres e as montanhas tristes. Quando o fogo começar vou lá estar, com eles vou chorar.
E mesmo antes que comece, todos saberão que os amei. Talvez os poucos sorrisos ultrapassem os muitos gritos, talvez o pouco carinho elimine o muito ódio, talvez a pouca humildade ensine a muita ganância, talvez o pouco calor aqueça o muito frio. Enquanto os há, há um talvez.
Talvez não lances o fogo. Pode ser que o amor vença.

4 comentários:

  1. ahah :P é o que digo, é bom para libertar o que vai no coração xD

    Já vi que tenho UM seguidor :P

    Ei de continuar se me lembrar :P

    Dacanada ja leio este post xD

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  2. Andreia10.1.10

    O Amor vai vencer. E o que agora é cinzento vai tornar-se colorido.
    Ando a ler um livro, "A Cabana" de WM. Paul Young, onde também há uma casa/cabana, onde está o Pai, o Filho e o 3º elemento, e achei curioso, o teu texto, porque faz a comparação entre o bem e o mal, tal como o livro faz e onde o cenário também é uma casa/cabana. Para não dizer que mais uma vez tudo o que li foi muito bom, mesmo muito bom.
    Beijos e fico à espera do próximo.

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  3. agora que li, posso dizer, ESCREVE IMEDIATAMENTE UM LIVRO!

    Espectáculo, tens uma imaginação inacabável, é impressionante!

    Gostei :D

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  4. Capuchinho vermelho.

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Comentários