sábado, 21 de fevereiro de 2015

A fábula dos pequeninos

Era uma vez uma larva que seguia rastejando pelo seu mundo castanho. Podia ser uma estrada de terra ou um monte baldio, mas claro, a larva não o sabia. Não vê como nós. Mas esta larva em concreto, não vendo como nós, pensa. E sente. Podemos considerar esta uma larva especial. Logicamente, diria eu, pois se se tratasse de um comum insecto, não se escreveria sobre ele. 

Reflectia constantemente a larva na sua triste vida. Sabia-se feia, pequenina, indefesa. Comia, rastejava, voltava a comer, sempre rastejando, temia a cada segundo os predadores que a ela queriam comer e era assim que desenhava a sua existência. Mas não era isso o que mais a preocupava, não, era o sentido. Porquê? Qual seria o fim daquele caminho tão cinzento, perdão, castanho? Tudo aquilo seria suportável se soubesse a que objectivo almejava. A verdade é que de cada vez que o Sol fazia sorrir as flores, a larva se encontrava de novo no seu calvário sem significado. Até essas flores invejava, imaginava-se como elas. Começam por ser frágeis, à mercê dos males do mundo, inibidas de movimento e de vontade, mas acabando por ser belas, por se destacar, por dar cor ao pano azul. 

A nossa larva via outras, e nem essas a consolavam. Não podiam falar nem ouvir, porque a nossa e essas demais não falam nem ouvem. E do que observava, a larva só via mais razões para temer. As suas irmãs eram levadas por pássaros, pisadas por homens, umas. A maioria rastejava até desistir e fechar-se num caixão que elas mesmas faziam, preferindo o conforto da morte às inquietudes da vida. Sempre que uma irmã o fazia, a larva chorava, o que quer que isso signifique neste pequenino mundo. Seguia rapidamente caminho ferida pela imagem da sua igual derrotada. Perguntava-se quando chegaria o momento em que também ela cairia. Seria mais fácil...

Contudo, havia um ardor no seio da nossa amiga larva. Ela não o sabia explicar, medir, tocar. Não a saciava, mas movia-a. Impedia-a de parar, de se render. Se a larva tivesse braços, seria esse ardor a mantê-los erguidos. De um jeito quase imperceptível, dizia à larva que havia um sentido sem lhe dizer qual era. Era nesse ardor que o lutador insecto repousava as armas que não tinha. Era por ele que ela não imitava as suas gémeas. E foi esse estranho queimar, essa energia que era combustível, que um dia fez a larva parar. 

Era estranho. Uma espécie de traição. A pequenina luz de esperança da pequenina larva afinal não era amiga nem sentido, era mais um predador. E tratou de a inundar de uma enorme vontade de não mais rastejar. Acabar com as perguntas sem dar respostas. Implacável. A larva percebeu o que sentiam as suas irmãs quando se tapavam com aquele manto que ela evitava. Era aquele ardor! Mas relembro, a nossa larva era especial. Lutou como nunca o fizera antes. Mexeu-se quando queria parar, comeu quando queria jejuar, abraçou o frio quando o corpo queria o conforto do casulo. Todavia, a luta não parou, até se apresentar como impossível. 

A larva percebeu que tinha chegado a sua hora. Mas quis escolher. Quando a pena imposta parecia ser a morte por expiração, sem alternativa, a larva quis dizer não e decidir como morreria. Rastejou mais um pouco, saindo de um abrigo que achara, e esse percurso foi o mais fácil de sempre. Sentia-se leve. Feliz. Colocou-se longe de plantas, buracos ou pedras. Só queria ver o céu. Sentia que era o seu destino deixar o pó por um instante e voar, voar, voar, ver de cima o que sempre a sufocara. Finalmente, um propósito, um sonho! Ao longe reparou num pássaro que a mirava. Ela sabia-o e ele veio, levando-a. E foi assim a nossa querida larva morreu. 

A pobre larva deveria ter-se tornado em borboleta. Os casulos eram normais e o bicho, tonto, teve a trágica sorte de nunca ver que as irmãs se fechavam naquele casulo para se transformarem. E quando os seus impulsos lho disseram, ela rejeitou. Poderíamos então julgá-la como estúpida ou triste, e garanto que ela aceitaria tais adjectivos em qualquer segundo da sua rastejante existência. Excepto aquele derradeiro. Ali, a larva deu razão a quem a julgou especial. Teve a sua metamorfose, não de corpo, mas de espírito. Sem nunca o chegar a ser segundo as leis da natureza, a nossa larva foi borboleta. Com mais cores que muitas das que ganharam asas. 

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Imagina que te preocupas com ditadores enquanto conduzes

Imagina que te preocupas com ditadores enquanto conduzes


A rubra luz inibia-me a vontade
A linha sem fim ordenava-me posição
Com poucas letras muito sim,
Muito não
Aqui um início, ali um fim
Ordem! na confusão.

Nada do que faço é meu.
Se erro a curva que almejo
Espero emenda indicada, 
Lá a vejo,
Mas a liberdade é uma fada,
Que enfeitiça com um beijo.

Ditadores.
Por todo o lado! 
Estou a ser observado!
Pau mandado, 
E bem! 
Como se fora mais deles 
Que do ventre de minha mãe!
Ditadores! Ditam dores que não doem, 
Só fazem temer a dor
Conduzem-me 
Chamando-me condutor.
Estou é no lugar no morto! 
Pelo que pago vendido pelo conforto
Que me quer dormente, 
Em transe, 
Absorto. 

E enquanto o fogo me arde as entranhas, 
Imagino-me guerreiro
O soldado primeiro
De grandes lutas, grandes façanhas. 
Revoltas!
Mas vejo pneus a darem voltas
E acordo, estremecido.
Era o real esquecido, 
Desculpe senhor no retrovisor!
É tempo de seguir, 
No que é que eu estava a pensar? 
Não sei, Conduz! 
Lá acelero, há que cumprir o mandar
Ficou verde a tal luz. 








terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Φιλοσοφία

O negrume, devagarinho, vai perdendo aquela sensação de infinito. A cada segundo, como se não os conhecesse, vai a caminho de um azul que quanto mais nítido se torna mais me faz acreditar que é a mesma cor que ainda há momentos eu contemplava. Nasce um novo dia, fazendo-me nascer para ele. Ao assistir a este ritual, a esta dança bem medida, percebo que o normal é tomá-lo como meu, apoderar-me dele, Dou-lhe nomes, meço-o, exploro as virtudes da luz e aproveito-me do anonimato da treva. Decido, a meu bel prazer, quantos feixes de raios solares me apraz ter como companhia no quarto, quantas lâmpadas usarei na noite para a escorraçar e fazer troça dela.

Mas não hoje.

A enormidade da tela azul transcende-me. Tento apalpar, perceber o limite, compreender o que os meus olhos me mostram num pequeno pedaço que eu possa processar. Mas é como se caísse num poço sem fundo e constantemente esperasse um baque que nunca aconteceria. Estranhamente, não me assusta nem entristece. É somente um entender-me pequeno. Ínfimo. Reflicto na quantidade de gente e de animais que esta Estrela já aqueceu, tempo, a quantidade de gente que esta Estrela está a aquecer neste preciso momento, espaço. Num pequeno papel branco está um ponto encarnado que vai diminuindo sufocado de dezenas e centenas e milhares e milhares e milhões de pontos pretos que se reproduzem no papel que já é um lençol e já é uma tela sem fim.

Decididamente, hoje não.

Hoje respeito. No que podem parecer as linhas de um filósofo perdido, desenha-se o mapa de casa. Quando chego ao momento em que todo o Homem se enlute e chora a morte de se perceber vivo num mundo que não corre nem por ele nem para ele, abraço o Criador. É-me claro quem sou. O que faço aqui. É-me claro que nada, nada é meu. Não o que compro, não o que construo, não o que ganho. Nada. Não existe propriedade nem propósito. Nunca poderei nem dar nem receber nada, porque tudo me é emprestado e retirado no devido tempo.

E, hoje, não podia estar mais aliviado.

São quilos e quilos de um peso que eu nunca sentira que ascendem dos meus ombros, da minha fronte. É como se me tivessem confiado a maior e mais temível responsabilidade da História e ma tivessem retirado logo de seguida. Aceito a dádiva de aqui estar, sinto-me grato por ela. Na verdade, ao ponderar na sucessão de eventos e não eventos que levaram a que hoje eu aqui esteja a mirar o horizonte, como se me fora possível tal entendimento, invade-me este bem humorado estado de espírito em que encaro toda a humanidade como estúpida, tal qual um cão que persegue a sua cauda. Rio-me de mim.

Vejo um pequeno pardal no ramo de uma árvore próxima. Tem aquela inclinação no pescoço muito própria dos pássaros que os faz parecer intrigados com algo. Rio-me novamente. De mim. Quero pôr uma ave a pensar, todavia, se ela tivesse algum comportamento humano, neste momento, seria também ela rir-se de mim.

Porque o que eu hoje aprendi, ela sempre soube.