quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O Avô Poeta

Carla era uma menina pequenina, loirinha, cabelo aos caracóis, que saltitavam alegremente ao ritmo do seu passo de corrida despreocupada, alegre, quando se dirigia para a escola, já depois de ter passado pelo seu querido Avô Poeta, cuja cabana se situava no caminho entre o vilarejo onde vivia e a escola. O Avô Poeta não era efectivamente avô de Carla, na verdade não era avô de ninguém, o que, em termos práticos, o fazia avô de todas as crianças daquele lugar; a todos dava rebuçados de carinho e palavras sábias de quem já viu o Sol nascer muitas, muitas vezes.
Nesse dia, ao chegar à sala de aula, havia uma palavra estranha aos seus olhos escrita no quadro: “POESIA”, lia-se, em letras garrafais. Era um velho hábito da única professora da pequena escola, mais que suficiente para as crianças da vila; todos os dias, antes das contas, gramáticas e outras coisas, dava uma pequena explicação acerca de um qualquer tema que considerasse útil e interessante para o seu grupo de educandos. No dia anterior, por exemplo, ensinara os “seus meninos”, como lhes chamava, a perceber a importância de pequenos gestos, que podiam ter muitas vezes grandes consequências.
Carla perguntou-se o que significaria aquela palavra. Não lhe era estranha, de todo, mas não conseguia dar-lhe um significado preciso, directo, só de a ver escrita. Só quando, momentos depois, a professora afirmou que quem fazia poesia eram os poetas, Carla se lembrou do Avô Poeta. No entanto, não se lembrava de o ver escrever versos, fazer rimas bonitas e musicais, tais como aquelas que a educadora agora dava de exemplo. Também nunca lhos pedira, mas tinha agora uma excelente razão, e a curiosidade ardia-lhe; seria o Avô Poeta, um poeta?
Ao sair da escola, os caracóis loiros de Carla saltitavam a um ritmo um pouco mais acelerado, impulsionados pela sede de saber própria da sua idade. Mal chegou a velha cabana do Avô Poeta, bateu freneticamente, gritando:
- Avô, Avô!
Num instante um velho, barbas esbranquiçadas e gastas como o seu relógio de cuco, barriga gorda, cheia de momentos bons e óculos redondos, armação dourada também gasta, abria a porta:
-Minha querida Carlinha, não te conhecesse tão bem, e estaria deveras preocupado com a urgência com que me chamas! Entra, senta-te e respira…
Já instalada, com um chupa na mão e o fôlego de volta, Carla contou a aula que tivera e a associação que estabelecera com o nome do Avô Poeta.
-…e nunca vi o poema seu! E no entanto adorei os que a professora nos mostrou, havia um sobre borboletas, e outro sobre um rio! O que mais gostei foi da forma como as palavras saíam da boca da professora, pareciam nós no escorrega, quando temos o fato de treino! Devo adorar os seus, se os tem… Porque não mos mostrou? – Quando a pequena acabou, o seu fôlego parecia ter-se escapulido de novo, ou pela janela, ou pela chaminé.
-Bem, querida… - A voz quente do velho saiu incrivelmente lenta e compreensiva, comparada à da menina – Sim, sou poeta, pelo menos, faço poesia, o que faz de mim um pouquinho mais poeta que tu ou que as outras pessoas… nunca te mostrei os meus poemas pela mesma razão pela qual não podes ainda ficar acordada até tarde, ou ver um filme estrangeiro, dos quais já te falei; és muito pequenina ainda, não serias capaz de os entender. E há outra razão…
-Mostre-me Avô, eu hoje aprendi a lê-los, já posso! – Carla estava encantada, por momentos teve medo que o Avô Poeta não fosse poeta, ou não tivesse poemas – E eu também não percebi tudo nos poemas da professora, por exemplo uma coisa qualquer do céu saber a curiosidade, ela não nos quis já explicar, mas ainda assim foi muito bonito!
-Bem, vou deixar-te perceber por ti mesma… - e levantou-se, retirando de cima duma estante uma caixa de madeira, uma espécie de baú, que entregou à criança.
Carla, ávida de poesia, entregou-se a folha do topo com um rasgado sorriso, mas algo não estava certo, logo pelo aspecto do texto…
-Avô… aqui a linha está cheia, nos poemas da professora as frases, os versos, não chegavam a meio da folha… - Simultaneamente, apercebeu-se, ao ler um pouco, que as palavras não pareciam as de uma música, para além de não fazerem muito sentido, como aquilo do céu ter sabor. – O que se passa Avô?
-Acho que descobriste a segunda razão, que na verdade são duas: a minha poesia não é escrita em forma de poemas, nem rima – explicou o homem – Não fiques desiludida, querida, deixa-me explicar-te uma coisa; na escola, aprendeste que a poesia é uma maneira de escrever textos, uma maneira bonita, com uma forma diferente! Mas a poesia não é só isso, é muito mais que isso: poesia é uma forma de fazer rimar o que vemos com o que sentimos, sem regras, sem ordens ao nosso coração. Logo, não deixa de ser poesia, por não ter a forma de poesia, a estrutura, digamos assim.
-Acho que estou a perceber Avozinho… - começou Carla – Então a poesia é um bocadinho como a massa, não é?
-Desculpa? Agora fui eu quem não percebeu querida! – riu o Avô Poeta.
-Então, há o esparguete, não é? Mas depois também há os lacinhos, os tubinhos, as estrelinhas, as letras! Têm todas o mesmo sabor, mas formas diferentes… Sim! E há também aquelas com cores Avô! Até nem servem todas para a mesma coisa, mas cruas, todas sabem ao mesmo! É, não é? – comparou a menina.
-Bem, estou impressionado Carlinha! Sim senhora, é uma óptima comparação, muito simples à primeira vista, mas talvez um pouco mais complicada do que tu própria se calhar entenderás. À velha moda da… poesia – Elogiou o velho.
E, no dia a seguir, na escola, Carla correu a contar aos amigos os conhecimentos muito aprofundados que agora tinha sobre a poesia. E, no jantar do dia seguinte, divertiu-se imenso com a sopinha de letras que pediu à mãe que fizesse, mas de uma maneira diferente; a cada colherada que ingeria, a massa sabia lhe a poesia, como se as letras se juntassem secretamente na boca e formassem palavras, versos bonitos e complicadamente simples. E que rimavam muito bem com a alegria que lhe davam.

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