sábado, 26 de março de 2011

A praia

A praia era belíssima, cheia de gente, colorida, animada. A areia quente era um tapete confortável, a única rocha que não fere os pés, antes os acaricia. O Sol, lá no alto, convidava a banhos da sua luz, todo um cenário idílico. Claro, também a areia escondia perigos, conchas cortantes, pedaços de lixo deixados por alguém que não merece o paraíso mas ainda assim o terá. A luz solar podia aquecer mas também podia queimar e, de todas as pessoas, algumas não sorriam, destoantes no cenário.
Depois havia o mar. Recheado de ondas, ainda mas misterioso se formava, pois não era possível perceber a sua forma, ah, o mar não tem forma. Naquele dia em particular nem do céu se podia distinguir, o horizonte andava perdido entre os azuis. Este mar despertou-me curiosidade, senti-me atraído por ele, era aliás inevitável que a cada momento passado naquela praia me fosse aproximando cada vez mais dele, mesmo que contra minha vontade. A água beijou-me os pés, e logo o gelo subiu-me pelas pernas; claro que custa, todos o sabemos. Neste momento já não podia voltar para trás, ainda que a minha vontade estivesse presa com o calor da areia, as pessoas, todas as grandes pequenas coisas que deixara para trás. Precisava delas, e nem sei bem para quê. Fui entrando no mar. Quanto mais a água me conquistava as pernas menos as sentia. Ele estava a engolir-me. Chegou aquele momento crítico em que temos que ganhar coragem para mergulhar; pensamos e repensamos nos milhares de facas que nos aguardam lá por debaixo, um frio que nos faz esquecer o que são camas e colos. E depois saltei. E sabem aquela fracção de segundo em que sabemos o que nos espera, e que por temos saltado é já inevitável? Aquele fracção de segundo em que pensamos no frio já sem medos? Porque só podemos temer aquilo que não conhecemos ou aquilo que podemos evitar. Depois de mergulhar, tudo ficou bem, e não voltei a pensar na praia. Estava feliz. O mar era a minha praia, e será a praia de todos nós. Claro, isto é uma analogia para a morte.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Sob a Lua

Nós não amamos a pessoa em quem pensamos durante o dia, amamos aquela com quem sonhamos noite após noite.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Viagens

Da janela um conforto quente
Da fria chuva que vai caindo
Chama dentro da paredes humanas.

À lembrança um futuro diferente
Um amanhã nunca mais vindo
Um atalho fora das existências planas.

De uma paragem sei-me carente
Mas o caminho corrido é lindo
Mofinos braços, etéreas lianas.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Tua Palavra é a Rocha que salva

Houve um tempo em que ainda existiam pregadores, homens com o dom da oratória, que falavam com eloquência, paixão e armas importantes como a retórica ou a simbologia, ao jeito d'Aquele sobre quem, enfim, falam. A propósito disto, e retomo já já a narração que ia iniciar, para quem não acredita na figura de Jesus enquanto filho de Deus e não segue os ensinamentos da Bíblia como guias para a sua vida, tenha pelo menos em consideração que também Ele foi um excelente orador (facto histórico) e - confiram com qualquer bom professor de português - a Bíblia é só o livro (ou conjunto de livros, melhor dizendo) mais rico em figuras de estilo. Adiante. Nesse tempo, também os ouvintes tinham outros ouvidos, ou pelo menos não os tinham cheios de outras coisas, digo bem, coisas. Para além de estarem acordados e não trazerem consigo telemóvel, escutavam e bebiam as palavras desses tais oradores, ávidos de palavras sobre a Palavra. E isto é a minha introdução para uma história que, se não aconteceu de facto, podia perfeitamente ter acontecido, e basta que a imaginem para que ela se torne real.
Um destes pregadores falou assim ao seu povo: Irmãos, tomemos em consideração dois homens, que podiam ser quaisquer de vós, que me escutam, ou eu mesmo, que vos falo. O primeiro deles é um homem da Igreja, assíduo no culto ao Senhor seu Deus e aos santos que com ele coabitam nos Céus. Anuncia junto dos seus a palavra de Jesus com eloquência, sendo prendado nas palavras e forte nos argumentos. Um pescador com resistentes redes, e com elas pesca homens que, na prática, estão já pescados, como vós que me ouvis  acreditando já nas maravilhas da vida d'Aquele que morreu por nós. Mais do que isto, este sujeito celebra a Missa com uma regularidade superior àquela que lhe é, à partida, cobrada, sendo ainda assíduo nas rezas diárias. Este é o primeiro homem que vos quero dar a conhecer, irmãos.
O segundo é o contrário deste. Não é baptizado, levando portanto uma existência orfã dos rituais próprios do comum cristão. Não vai à Missa, não procura anunciadores da Boa Nova, não reza. E é este o segundo indivíduo. 
Dizei-me agora irmãos, quem dos dois está mais próximo de alcançar a vida eterna, por via do amor incondicional de Cristo? E respondo por vós, sem dúvidas, o primeiro. Fosse a fé cristã uma balança e a dele estaria provavelmente a rojar a areia que vós piseis. Certo? Errado.
Estais surpreendidos? Também o jovem rico o ficou perante Jesus de Nazaré, depois de ter recusado dar todos os seus bens, logo após ter enunciado de cor os mandamentos de Moisés. Palavras e obras irmãos, sabeis bem qual a diferença, mas pouco sabeis do valor real de cada uma. O primeiro sujeito declamava palavras bonitas, e cumpria com preceito os ritos da Doutrina. Mas conto-vos agora, e não o fiz propositadamente à pouco, que disto ele não passa. Na sua vida em nada faz valer as ideias que anuncia, criando fardos pesados que nunca tencionou carregar, entregando-os a outros e reprimindo-os se não cumprirem as leis que profetiza. Constrói uma enorme mansão, mas fá-lo sobre a areia.
Do segundo sujeito nada tenho a revelar senão aquilo que já vos expus. Porque será salvo, irmãos, aquele que for sensato e edifique a sua casa sobre a rocha firme, a Palavra de Deus, com tijolos de acções, cimento de atitudes e alicerces de obras, e souber fazer tudo isto em segredo. Soubera eu que este segundo homem era praticante de grandes obras, e já estaria ele a fugir das intenções de Jesus. Porque se a nossa recompensa não será dada pelos homens, então não nos preocupemos em mostrar a nossa grande e admirável fé, como o primeiro que vos apresentei. E se amarmos o próximo como Jesus nos amou, não precisamos sequer de referir o seu nome, pois já estaremos a evidenciar a sua vida.

Ainda e já

As fronteiras entre a juventude e a idade avançada resumem-se a duas simples palavras: ainda e .

terça-feira, 8 de março de 2011

Nos meus muros não há portas

Nos meus muros não há portas
Só bolas cristalinas feitas de vento
Que vão e vêm, coisas mortas
Fracos, fortes, e o não lamento.

A minha árvore não tem raízes
E já não sei se frutos lá por cima
As seivas minhas são meretrizes
Chama sem gás, só, esgrima.

Quem foi que me disse sorriso,
Se de sentir tal gesto carece
Folhas secas para trás piso
E vá-se o Sol, não me arrefece.

domingo, 6 de março de 2011

Sopro

Um criança corre com as pernas suas
Novas, frescas, com sede de vida.
Mas ainda curtas, esfolam-se nuas
Na via que é ainda comprida.

Médicos o vissem, comprimido já dado
Um adulto anónimo, um colo pouco quente
Outra criança um choro desenfreado
Cada pessoa, seu tratamento diferente.

Mas há remédio melhor que os da ciência
E, como será?, é extremo de bem
Sara a ferida e é de carinho essência
Um sopro e um beijo de mãe.

A placa de esferovite

Sempre amei o passado, e quando amamos muito uma coisa gostamos de olhar para ela. Um olhar diferente, uma contemplação, um adorar sem vénia mas muito, muito intenso. Fala-se imenso no beijo, no dar a mão, em carinhos e oferendas, mas não tanto neste gesto, pela simples razão de pouco ter de físico. Mas há coisas que só podem ser olhadas, lá está o passado. Tenho então no quarto uma imensa placa de esferovite onde, com alfinetes de várias cores (uns mais coloridos que outros) vou postando fotos e objectos que imediatamente me levam para um outro tempo, e trazem-me cheiros e sons e sensações, talvez mais saborosas do que o foram no momento em que foram presente. E o meu quarto não tem espelho nem janela, só esta placa de esferovite. Os anos passaram-se e sempre prestei culto a esta placa, enriquecendo-a com pedaços de uma vida que eu fui vivendo fora de tempo. E antes de morrer, caí no abismo em vez de subir a escada, porque fiz todo o caminho a andar para à rectaguarda. Agora o passado é por mim ansiado, mas não por o querer reviver; simplesmente faria tudo para o mudar.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Querubim salgado

A criança cresce e o mundo explora
Tudo é doce na plenitude sua
Aquilo que é mau logo se ignora
A Terra a si se abre, de preconceitos nua.

A dor também é enfim descoberta
A primeira ferida menos custa, é curiosa
Mas toda a coisa, má ou boa, é certa
Simples, definida, como a prosa.

Mas eis que a pequena encontra o amor
E a poesia do amar é um presente envenenado
Porque parece doce e vem do criador
Mas este anjo é um querubim salgado.

terça-feira, 1 de março de 2011

O que significa confiar

Em tempos idos, um homem acabado de assim se tornar procurava emprego. Procurou um senhor que sabia ser bom empregador, dono de vastos terrenos, sendo que a paga não era feita em dinheiro; ao trabalhador estariam garantidos os bens de primeira necessidade, a saber comida, roupa, tecto e cuidados de saúde. Por outras palavras, ao trabalhar para aquele patrão o homem não receberia qualquer compensação financeira, mas, vista rápida pelo assunto, não necessitaria de tal, pois nada mais seria necessário comprar. No entanto, este nosso amigo, cauteloso, quis saber segunda proposta, de um outro senhor também ele possuidor de uma herdade e igualmente conhecido por ser bom patrono. Este, ao contrário do primeiro, oferecia a totalidade do ordenado em dinheiro, quantidade que seria suficiente para cobrir as necessidades acima descriminadas, mas não mais.
Postas as duas ofertas, o homem resolveu que o melhor para si e para o seu futuro seria aceitar as duas, pois viria satisfeitas as suas necessidades primordiais e teria ainda o dinheiro para o que lhe aprouvesse. Quanto ao tempo, ele lá se arranjaria, poderia dormir menos e fazer numa hora o trabalho que normalmente levaria três. Os campos de ambos os patrões ficavam relativamente próximos, pelo que impossível, não seria. Mas foi. O tempo, sempre ele,  mostrou mais uma vez que não estica e o nosso homem rapidamente percebeu que não podia servir a dois senhores, era inexequível. Aliás, ambos os patrões, conhecedores da sua situação, já lhe haviam feito saber as suas considerações; o senhor do dinheiro mostrara-lhe que com o seu salário poderia fazer o que quisesse, mesmo que menos comesse ou mais frio passasse. Podia comprar coisas, e isso é algo de fenomenal, disse ele. Assim, todo o tempo e dedicação do trabalhador deveriam ser despendidos para a sua lavoura, e não para a propriedade do vizinho. O primeiro patrono, todavia, falara-lhe de maneira diferente; Filho, começou, " vejo que serves a mais que um homem, não por necessidade mas por sobeja. Como notas, e sei que notas, Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podes servir-me a mim e a esse outro patrão, nem precisas, se me permites que o diga. Dou-te tudo o que necessitas, trabalhando para mim não tens que te preocupar com o dia de amanhã. Vives cada dia e só com o presente terás que estar em cuidado, pois o amanhã asseguro-to eu. Agora, se servires a quem te dá dinheiro, terás que planear e problematizar, e mais tarde ou mais cedo cairás na tentação do supérfluo, e amanhã não terás que comer, ou tecto onde passar a noite. Olha para os animais e para as plantas da minha herdade, a todos estimo como a mim mesmo e todos podem respirar sabendo que o próximo fôlego lhes está assegurado. Comigo não terás jóias nem vestes caras nem banquetes maiores que a barriga, mas se te curvares perante o peso do ouro, então faltar-te-ão os dedos e os membros e o estômago. Confia em mim, e a confiança será a rocha onde edificarás a tua casa.