quarta-feira, 19 de maio de 2010

Uni

Imerso no verso que por ser só é universo disperso e escrevê-los é a fé que professo.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

No tempo em que os animais tocavam

Era uma vez uma cigarra. Não, este não vai ser um conto de crítica à arte e elogio ao trabalho, logo não há formiga. Só um grande girassol. E a cigarra. Essa cigarra cantava muito bem, como todas, mas como nenhuma escrevia os seus amados versos e até tocava guitarra, vá-se lá entender.
Naquele dia, o céu estava cinzento, mas a cigarra tinha acabado de escrever um poema e andava a cantarolar as estrofes nas cordas da sua guitarra, distraindo-se tanto no seu mundinho enorme de insecto poeta que se perdeu; não que morasse numa freguesia específica e tivesse onde ir comprar pão, simplesmente habituara-se a um conjunto de árvores que lhe davam um óptimo abrigo, principalmente da chuva que ameaçava cair. Quando deu por si, estava num zona perto de um lago, e tudo o que conseguia avistar era uma casinha branca e pequenos barcos que ali aportaram. Assustada, a cigarra sentiu os enormes pingos que começavam a sua investida, quando lhe saltou à vista o enorme girassol, que tinha grandes folhas até perto do chão, e para lá correu em busca de refúgio. Se se conseguem fazer nascer girassóis em terrenos de lago é algo que se desconhece, mas também não há reportagem de insectos mestres de instrumento e não fora a planta e nesta história não haveriam nem guitarra, nem cigarra.
Toda o dia choveu e toda a noite chuva caiu, e a cigarra não pregou olho, com medo das margens que furtivamente avançavam. Felizmente, era madrugada quando o plúvio parou e nada de mais grave ocorreu, e o Sol resolveu dar um pouco de descanço à pobre poetisa. Quem pareceu mais agitado foi o girassol que, tendo estado até então cabisbaixo, agitou-se com o romper da luz, fixando-a. A cigarra vira na sua curta vida singularidades de ordem vária, até nas poças de água cristalina, mas nunca pela vista lhe entraram flores dançantes, nem falantes. Mas esta falou: Como estás, pequeno bicho? Tenho estado preocupado. O lago é perigoso para vós, que tendes pernas e não escamas. Perdi-me sem ter casa, a nós que temos pernas muito acontece, replicou a cigarra. Mas sim, estou bem. Diz-me, porque olhas o Sol? Não te queima a vista? Vista tenho-a queimada de mais não ver que as pernas que não tenho me permitem, explicou a flor, Quando era pequeno e ainda crescia, a cada dia ia vendo algo novo, que me enchia o coração. Agora, mesmo grande, vejo sempre o mesmo. E por aqui poucos passam, só bichinhos como tu que logo fogem à procura de vida, e eu a minha encontro-a olhando o Sol. Acho-o mágico, quando o olho sinto-me quente e apaixonado. Eu gosto muito dele também, concordou a cigarra, mas esse amor é a chuva que me trás, quando estou claro refugiado nas minhas árvores. Quando ela vem imagino-lhe proveniências e dou-lhe destinos, que torno bonitos nestes versos que comigo trago, e toco. Versos?, questionou o girassol, que são versos? Bem, é como se faz poesia... Nunca ouviste falar? retorquiu o insecto. Não, diz-me, explica-me... Está bem, vou tentar, não é fácil. Por exemplo, esse amor que tens pelo Sol. Poesia é tentar traduzi-lo em palavras, não faladas, mas escritas, postas numa folha. E tenta-se que rime, para ficar como uma música, como as que os pássaros nos trazem de longe. Acho que estou a perceber, sim, acho que já sabia o que era poesia, só não a escrevia. Olha, cigarra, sobe-me, vem até aqui acima. Eu ajudo-te, empurro-te com as folhas...
Como pedido pela gigante flor, a cigarra trepou até às pétalas, sentando-se no centro do girassol: Olha, meu ser pequeno, diz-me se isto não é poesia... Ao longe, no horizonte formado pelos picos de árvores, nascia uma faixa de cores, vinda de tão remoto local quanto o de termo. O Sol, alto, relfectia-se no lago formando no ar círculos irregulares de luz, e o ar estava cheio de cheiro e chilreio de terra e pássaros e os barcos acariciavam a superfície das águas. Quando respondeu, não foi fala que saiu da garganta da cigarra, mas versos cantados que pela primeira vez lhe saíam directamente dos dedos e do coração, não da cabeça e das cordas. O girassol, em comunhão com a lírica do insecto, soube-os de igual natural modo, e tambem os cantou, e eternamente no lago, assim haja arco-íris e canto de ave, se pode ouvir o raro canto:

Alva manhã de cor pintada
Sol e chuva se beijam no ar
Aqui somos cigarra do mar resgatada
E girassol que não sabia cantar.

E a Estrela nos conta sua história
E as aves que ventos cortaram
O lago reflecte a sua glória
Mais os barcos que por lá navegaram.

Tudo existe num tempo perdido
Num espaço visível a olho fechado
Seremos sempre ouro escondido
Pensar-nos-ão mero conto encantado.

Poetas nesta paisagem de cor
Pétalas e canto e guitarra
Uma singular e improvável flor
Mais a amiga pequena cigarra.

Reflexo

Lápis meu lápis meu, haverá alguém que conheça melhor quem sou eu?

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Pintura

A História não se constrói, a História é um quadro gigante, muito comprido e largo, já totalmente pintado. Tempo e espaço não são mais que o ponto de encontro entre o eixo da largura e do comprimento da tela, e eu não passo de um ponto pintado nessa obra, preso, amarrado, cativo a esse tempo e esse espaço. Nós, humanos, já nascemos presos, a alma nasce presa a um corpo limitado e mais do que isso Deus foi cruel o suficiente para nos deixar perceber e imaginar aquilo que de fantástico podíamos fazer e não conseguimos. Talvez também Ele o não consiga, afinal somos à Sua imagem e semelhança. Talvez só possamos voar no fim do quadro.