quarta-feira, 6 de outubro de 2010
Cicatrizes
Na morgue estavam dois corpos, o de um homem e o de uma mulher. Nunca em vida haviam estado juntos e não deixa de ser curioso que seja no sono eterno que estes dois se conheçam. Mórbido talvez, mas curioso sem sombra de dúvida. Era díficil dizer quem era a mulher, ou melhor, quem tinha sido, que feitos teria realizado aquele corpo outrora recheado com uma alma. Podia apenas ver-se que havia sido submetida a várias intervenções cirúrgicas plásticas, daquelas que tentam combater as marcas do tempo e cujos resultados podem ser questionados. Em morte, pelo menos, de pouco lhe valia. A falta de manutenção dessas operações e desse processo de rejuvenescimento ilusório levava a que a sua expressão fosse até mais bizarra que o seria se tivesse o rosto de uma simples senhora de 80 anos. Já o homem, esse, também possuía estranhas marcas. Mas, ao contrário da mulher, essas eram naturais; no braço, podia ver-se desenhada uma dentada, aparentemente de tubarão, ou crocodilo, ou outro animal feroz, que de dentadas pouco entendo. Ao longo da face um longo corte, talvez fruto de uma dura batalha com um samurai, ou mesmo de uma queda aquando da exploração de uma floresta tropical virgem. Na mão esquerda faltava-lhe um dedo, o polegar, sabe-se lá quem o terá devorado. O tronco e as pernas apresentam outros sinais de igual natureza, uns maiores, outros mais pequenos. Em vida, comparados, muita gente entendida teria descrito o corpo da senhora como mais belo, a nível estético. Agora, que de pouco serve a uma qualquer passerelle de moda, a mulher é desprovida de qualquer história, marca que pudesse agora valer-lhe um elogio. O homem, que outrora sem dúvida causara repulsa, tinha algo que a senhora nunca mais teria. Tinha medalhas de vida. Qualquer contador de histórias ou criança, deparada com aquele cadáver, podia imaginar e criar os mais mágicos e fantásticos contos e aventuras, sem nunca se arriscar a estar a fugir muito da verdade. E ao olhar-se para aqueles dois, podemos dizer que um teve uma vida e que o outro... a viveu.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Às vezes a história das medalhas não é assim tão fantástica, sendo que estas podem resultar de uma queda nas escadas do metro :)
ResponderEliminar