sábado, 30 de outubro de 2010
Carta de quem não foi, para quem poderá ainda ser
Ao cabo de oitenta anos de vida, pensa-se mais no passado do que no futuro, não por não haver amanhã, só mesmo por não se poder saber com certeza o que ele guarda. Sonha-se muito com esse amanhã, mas pensar, pensa-se no ontem. Quem me vê de fora e pudesse, como se faz aos livros, folhear as primaveras da minha vida, diria facilmente que fui uma mulher bem sucedida. Realizada. Estudos, carreira profissional sempre em crescendo e muito prestigiante e bem-remunerada. Administradora de umas das mais cotadas empresas de telecomunicações do país parece algo realmente digno de orgulho. Agora que olho para trás, só vejo quatro paredes e uma secretária e um computador, que dizem ser uma janela mas para mim assemelha-se agora mais a um muro de betão bem alto e cinzento. É só. Nunca pude, nem quis, casar. Fui sempre demasiado dedicada ao meu trabalho e ele sempre me roubou muito tempo, ora aí está uma coisa que o dinheiro não pode comprar. Talvez devido ao meu trabalho deixe, depois de morrer, o meu nome gravado numa pedra fria qualquer. Mas deste mundo mais não deixarei mais que aquilo que levo dele, pouco ou nada. Sinto-me assolada por uma tristeza de morte, e escrevo esta carta para deixar prova e finalmente dizer aquilo que nunca tive coragem de dizer em voz alta. Cá vai: sempre sonhei ser uma astronauta. Mais do que um sonho de criança, sempre quis partir em missões através dessas mil estrelas que pintam o céu que só agora aprendi a apreciar cá de baixo. Parecem pirilampos e também as estrelas dançam e dão-me abraços enquanto ao longo da minha vida de tijolo me tentaram ensinar a bailar com elas. Muitas vezes sonhei comigo no espaço, onde não há tempo nem gravidade e a cortina entre o real e a fantasia é mais ténue que em qualquer outro lado. Pensava eu, pensando como os outros, que eram esses sonhos para artistas preguiçosos que nada querem fazer da vida. Pois agora entendo que quem leva a sua existência sem saber que sapatos vai calçar amanhã não faz mesmo nada da vida. Vive. Eu não vivi, eu limitei-me a a existir, a ser, a corresponder as necessidades físicas de um corpo que tanto aprisiona uma mente que quer voar. Não sei quantos mais anos tenho de vida, sei que pouco posso fazer deles, e sinto que não serão tantos quanto isso. Penso em duas possibilidades de vida depois de adormecer para não mais acordar: ou irei para um local sem corpo e aí a minha mente vai dançar luzidia que nem os meus pirilampos mágicos ou, então, reencarnarei e terei outra oportunidade de existência. Aconteça este segundo cenário e juro a Deus que me está quase a receber que serei astronauta, descobrirei astros nunca dantes contemplados. Ah, verei a outra face da Lua. E rir-me-ei de quem como eu viveu dentro de quatro paredes num mundo que tem quatro cantos e quatro elementos. Ontem tive um sonho bastante peculiar: dormia no meu quarto mas não havia tecto nem telhado nem nada, só o céu. Quem ler esta carta e puder ainda viver, por favor, tira os tectos da tua casa. O céu não tem limites, e o infinito é um papel imenso em branco. Pega nos lápis de cor, e desenha. Pirilampos.
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Nem sei como descrever o que este texto me fez sentir... tentarei mas será sem sucesso. Está extraordinário mesmo. Nota-se todo o sentimento e angustia da mulher, que apesar da idade geralmente trazer nostalgia, a esta pessoa trouxe-lhe o sonho. Este texto acaba por ilustrar também o que sinto e o porquê de enaltecer o sonho acima de qualquer coisa.
ResponderEliminarEstá mesmo muito bom Diogo.
Luz.
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