domingo, 17 de outubro de 2010
Baú
Adormeci embalado pelo bater na chuva na janela, chuva que sendo objecto último do eu acordado candidatou-se a ser o primeiro do eu a sonhar, e foi. No sonho estava no meu quarto, o mesmo em que adormecera; mas, para além da cama, nada ali mais havia senão um pequeno baú gasto por um tempo que, ao que parece, também corre no mundo dos adormecidos. Quando vi o baú, não me perguntei porque estaria ali um baú, nem perguntei onde estaria a mobília que deveria estar no lugar do baú. Pois, é que nos sonhos não se fazem perguntas, só se sonha. E eu sonhei dentro do sonho, algo a que um bom matemático chamaria um sonho ao quadrado, ou a que um bom mestre de Letras chamaria pleonasmo. Eu não lhe chamei nada, porque lá está, por ali só se sonha. Bom, ao ver um baú sonhei que era um pirata. Até tinha um papagaio ao ombro! E como um bom pirata que não sou mas fui, imaginei tesouros dentro do baú, muitas moedas de cobre, cálices de prata, medalhões de ouro! Mais, e porque fui um pirata muito moderno, imaginei que lá dentro pudessem estar chaves de grandes barcos a motor (os outros nunca precisaram de chave, só de vontade)e até de automóveis topo de gama, que em terra também se passeia bem e descobrir , tudo pode ser descoberto, visto que nada é conhecido. Desejei que dentro do baú pudesse estar tudo isto, e porque não roupas caras, bons sapatos, algumas maquinetas. Na verdade, desejei ter tudo. Foi nisso que pensei antes de abrir o baú. Quero ter tudo. Quero ser e conhecer todos, viajar mesmo que sem os tais barcos. De súbito, não me senti pirata mas poeta; sei que era poeta porque nada tinha de meu e sentia-me dono de tudo, dos sentimentos, e apesar de ter amor, faltava-me que eu amava. Mais, ao pensar nisto, logo um formigueiro me assolou a ponta dos dedos, como se estivessem ao lume, e fogos destes só se apagam de uma maneira, quem é poeta sabe qual é. Como queria ter tudo, talvez ao abrir o baú encontrasse lá um papel e uma caneta, desejei que sim. Ou talvez estivesses lá tu. Não cheguei a descobrir, porque nos sonhos não se descobrem coisas, porque antes de se descobrir... Acorda-se.
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(desta vez foi porque não tenho sessão iniciada)
ResponderEliminarquando me apetece escrever ponho-me em biquinhos dos pés, sabes? em vez do formigueiro. e acho essas coisas que acontecem aos poetas e às pessoas que escrevem (porque eu ainda sou só uma pessoa que escreve) interressantes. isso da escrita ter baús e sintomas diferentes.