domingo, 14 de novembro de 2010

O meu Titanic

A tasca cheirava a vícios e a mar e era num vício que eu apostava a minha ida para esse imenso mundo azul. Titanic, chamam-lhe, nem Deus o pode afundar, dizem. Levará daqui a minutos pessoas e bagagens e sonhos e queira a Sorte que me leve a mim também. Do outro lado do Atlântico esperam-me oportunidades, espera-me uma vida melhor. Ah, mas preciso de ganhar este jogo, tenho lá dinheiro para comprar bilhetes destes...
Perdi. O mundo que não poderei já construir caiu-me aos pés, sentia quase ódio pelos atarefados que preparavam agora o embarque naquele navio monstruoso. Como um pobre que observa as montras que não pode comprar, dirigi-me ao cais para ver a partida daquela gigantesca arca de tesouros boiante. Há quem beba para esquecer, eu quero-me lembrar bem das memórias que nunca construirei a bordo de Titanic.
Olhava para as pessoas que subiam para o barco, atarefadas, sorridentes umas (as que sempre riem e cá pouco deixam) e chorosas outras (aquelas que só rirão lá e cá deixam lágrima e saudade). Existiam vestidos bordados e calças rotas, penteados amadores e despenteados profissionais. Nem entravam pela mesma plataforma, e mesmo lá dentro, soube que não dificilmente se cruzariam classes. Talvez as casas de banho sejam as mesmas...
O meu carinho estava com a ponte dos pobres - pela qual eu mesmo teria subido -  mas por momentos atentei melhor na zona dos altos estratos. Muito artificio, muita maquilhagem, muito sintético, muito plástico. No entanto, no meio de toda aquela inaturalidade, descobri um quente sorriso capaz de romper com as amarras das pinturas que o tentaram tapar. O meu coração falhou uma batida. Conheço-a? Impossível, só olho em frente nessas pobres travessas, nunca para cima em ricas avenidas. A minha alma dava-me imagens de momentos com aquela mulher de faces rosadas e olhos profundos, um intenso e demasiado real déjà-vu. A mulher reparou também em mim, e aquele sorriso até há pouco simples enfeite da sua bela expressão abriu-se propositadamente para mim, electrizante, terno, apaixonado. Sou quase capaz de jurar que me tentou alcançar com a sua delicada mão, mas sei lá se não quis ela só agarrar o corrimão da embarcação. Eu sim quis chegar-lhe, mas no meio daquele momento o tempo apenas parara para mim e para o mundo continuara a correr, e Titanic partiu, barulhento, vagaroso, como que fazendo chacota da minha miserável existência parada.
A encantadora figura atou à volta do meu coração uma corda que agarrou aos motores do navio; num momento de loucura - que viria a ser o meu derradeiro - decidi entregar a minha vida de artista a um momento de profunda arte, dirão uns, pura estupidez, dirão muitos mais, quem só os quis viver no meio de sonhos quentes numa cama confortável. Corri, rompi a barreira de sofrimento e lágrimas e atirei-me. O segundo que passei no ar, entre o cais e o mar, deu-me um misto de alegria e tristeza e saudade e nostalgia e paixão e tudo. Mergulhei e a água não me acordou, e desatei a nadar, furiosamente, parecia uma cotovia a tentar voar contra o sentido de um tornado. O gelo chegou-me aos ossos e a força de mim fugiu, mas nada mais havia a fazer. Poucos perceberam o que se passara, e estes pouco se importaram. Claro que lhes deu ocupação para uns segundos de curiosidade e fascínio próprio de quebra do normal, mas tinham a mente bem mais preenchida com a partida de Titanic. O sal que saía dos olhos juntava-se ao do mar e depressa o meu corpo fez o mesmo, inanimado e vivo como nunca estivera.
Talvez Deus não afunde o navio, a mim é que não afundou. Afundei-me voando, e se não me tornei Rei do Mundo, gritei para ele que era Rei... de mim mesmo.

1 comentário:

  1. Obrigada por teres escrito isto no dia dos meus anos. Encontro palavras que dizem muito da noite de ontem. Relê. Certamente encontrarás aquilo que digo. Não da mesma forma. Por certo, seria impossível. Mas quase igual, isso, de certeza...

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