Era uma vez uma cegonha que vivia no tempo em que ainda eram as cegonhas que entregavam os bebés de porta em porta a quem, por via de processos burocráticos que aqui dispensarei pormenorizar, os desejasse e encomendasse. Até este dia, a cegonha, já experiente, sempre fizera um óptimo trabalho, tinha já renome no seio da comunidade de cegonhas daquela ocupação. O seu prestígio possibilitava que fizesse entregas de grande importância, como bebés filhos de rainhas e princesas. Mas a nossa ave um dia enganou-se e claro, sempre que há algo fora do normal, há uma história para contar, que de factos regulares pouco se pode dizer.
Tinha então a nossa amiga cegonha duas entregas para fazer: dois rapazes que de tão iguais no corpo não faziam adivinhar as diferenças dos berços onde se iriam deitar. Um iria morar para um palácio enorme e só não beberia ouro porque é indigesto. O outro iria para um família pobre que quisera a única riqueza que não se paga, e fazia a importante cegonha esta entrega porque ficava a pobre aldeia a caminho do rico castelo. Pois já estará o perspicaz leitor a adivinhar o sucedido. O menino que já era pobre antes de nascer, chamemos-lhe José, foi levado para a família da realeza enquanto Francisco, o rei recém-nascido, ficou no humilde casebre.
Encontram-se então duas semelhanças entre os bebés no geral e os bolos. São ambos doces e, depois de entregues, não podem ser devolvidos. Nem houve motivo para tal enquanto não se lhes nasceu os dentes, afinal, até certa idade as necessidades são as mesmas e as naturais e pobres e ricos as podem satisfazer. Cresceram então José e Francisco em tudo diferentes um do outro; para além das casas onde foram criados, Francisco era alto e loiro e de olhos azuis, um rapagão forte. Já José, o príncipe por engano, era pequenino, cabelo crespo sempre desalinhado, selvagem. Os olhos eram negros e profundos. Uma coisa tinham, porém, em comum. Os dois viveram sempre permanentemente insatisfeitos, desafiadores do seu destino, insaciáveis de algo que simplesmente não tinham.
Francisco não suportava a pobreza e os limites intelectuais que o seu meio lhe impunham, sentia-se predestinado a um futuro de poder e conhecimento e ali em pouco mais mandava que nas vacas, e essas nem sempre lhe davam o leite quando ele queria e precisava. Era curioso e não se satisfazia com as respostas fáceis e infantis que o seu pai lhe dava, bem como desprezava as histórias surreais de gnomos e dragões com que a mãe o habituara. José, esse desenvolveu com a chegada à juventude uma alergia tanto literal como psicológica ao ouro. Era ensaboado com aulas de ciências e matemáticas e línguas e na verdade tudo aquilo lhe parecia frio, cinzento. Acreditava nas fantasias que outros livros lhe contavam, mas sempre que lhe ocorria falar nisso era reprimido e proibido de dizer tais leviandades em voz alta.
Aos poucos, o sentimento de revolta foi crescendo e ganhando força na alma de cada um. Certo dia, Francisco acordou e olhou para o seu quarto de madeira e pensou que não eram aquelas paredes que haviam de receber os seus sonhos para o resto das suas noites. Partiu então de casa antes do romper da madrugada e, noutro reino, procurou instrução e tanta era a sua sede e talento para o poder, que acabou por liderar um grupo de revoltados contra o rei do tal reino, e assim o rei Francisco encontrou o Destino que falhara por culpa da cegonha. José, na mesma madrugada de fuga de Francisco, escapuliu-se da morada real e, disfarçado de pobre deambulante, refugiou-se numa aldeia vizinha do reino, já pertencente a um outro. Lá, esqueceu as verdades absolutas que aprendera e deitou-se à escrita de canções, acompanhadas de uma guitarra que trouxera do palácio. Na aldeia sempre lhe conheceram trovador e os seus olhos negros nnca lhe denunciaram as ricas origens.
Nos caminhos de fuga das realidades desconfortáveis, José e Francisco cruzaram-se. A cegonha que voa do início deste conto para lhe acompanhar o final, sentiu a proximidade dos dois e viu, lá do alto os caminhos antagónicos que seguiram. Percebera há muito o seu erro, mas ao ver a perseguição apaixonada de felicidade, tomou uma decisão: nunca mais uma cegonha entregaria um bebé à própria família, para que assim possa lutar e viver numa permanente insatisfação positiva. Nunca ninguém viverá contente e quem se acostumar à realidade onde caiu, morrerá com um amargo sabor de vida falhada.
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