sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Ses

Por entre o vidro percebia-se o frio que fazia no exterior. A chuva caía implacável, sem olhar onde nem a quem. Molhava, era a sua função. E o frio congelava, contrastando com o calor do autocarro, tão confortável, diferença figurada no vapor que me saía da boca e embaciava a janela. Ia absorto nas minhas poesias de transporte enquanto ouvia a sempre fiel e vadia música quando o veículo deu um pequeno solavanco, chiou baixinho e parou. Desviei o olhar da rua e fixei-o na porta, interessado nas pessoas que vinham a entrar. Não que esperasse ver alguém conhecido; não, simplesmente sempre me deleitei com o tão variado tipo de pessoas que se vê num qualquer transporte, e por mais que utilizemos sempre o mesmo, à mesma hora, são sempre diferentes. Hoje, uma senhora idosa entrara primeiro, depois de agradecer ao jovem que a deixara passar. Depois do rapaz, entrou um sujeito gordo, de barba rala, extremamente molhado. De seguida uma senhora de meia-idade e




o Paraíso. Sim, é o Paraíso. É, tenho a certeza. O autocarro pareceu arrancar a toda a velocidade enquanto permanecera parado, o quente do veículo tornara-se frio e todas as gotinhas de chuva lá fora pareciam convites irrecusáveis a passeios e corridas e sorrisos. Entrara uma rapariga, completamente encharcada, completamente majestosa. No intervalo que corresponde ao espaço em branco acima, ela entrou e sentou-se de maneira a que os olhos verdes continuavam na minha direcção, vindos do meio do céu, ou seja, dos cabelos molhados que trazia colados à cabeça. Entretanto, o senhor gordo abeirou-se de mim e pediu licença para ocupar um lugar cujo acesso eu estava a impedir, ao que eu tentei balbuciar um com certeza, que se revelou pouco mais que um pedaço de saliva que foi cair no colo. Tentei limpá-lo com a manga do casaco, mas apenas consegui fazer embater o cotovelo no banco da frente; tudo parecia confuso e absurdo, mas quando levantei o olhar e a contemplei, tudo fez sentido e era belo e felicidade. O coração parecia querer sair e ir deambular algures, preso por um peito que de tão esforçado já queimava. A minha paragem passou, mas as pernas decerto tinham ido dar o passeio que o coração desejava, pelo que ali figuei. Passaram-se cerca de dez minutos (podem ter sido dez segundos ou dez horas, não sei) e ela levantou-se. Quis seguir aquela rainha, aquela princesa, aquele bocadinho de alegria e Sol no meio de um dia tão triste e frio. Mas as pernas não tinham voltado ainda. Com elas tinham ido a coragem e o atrevimento e eu e tudo. Ela saiu, e eu fiquei. Nunca mais a vi.

E se eu tivesse ido atrás dela?

Sem comentários:

Enviar um comentário

Comentários