sábado, 11 de agosto de 2012
Pipocas
Sentei-me com o meu balde de pipocas e olhei para o ecrã. O filme estava mesmo a começar! Contava a história de uma rapariga, um pouco mais nova que eu própria, que vê a sua vida aparentemente normal e sem grandes problemas ter um pequeno grande percalço. O filme não era de terror, não tinha espíritos nem monstros nem extraterrestres, apenas os horrores da vida em que nós apenas pensamos e que, por norma acontecem apenas aos outros e.... nos filmes. Enquanto via o dia a dia da personagem, tão real quanto possível à carne através da lente, ia comendo uma pipoca, outra. As pipocas ajudavam-me a distanciar da tela, não mergulhar nas imagens, lembravam-me permanentemente de que era apenas um filme e cada uma era um comprimido de realidade. Agora, o problema da personagem; ganhou a lotaria. Nunca fora muito pobre, mas dos cinquenta carros estacionados na sua rua de prédios nenhum era dela, nem da mãe, nem do pai. O dinheiro foi, ao início, uma lufada de ar fresco. Estudos pagos, a carta de condução, um carro, uma casa maior, uns "brinquedos" novos. O pior, foram os amigos novos, as gentes de muito boas famílias dispostas, com o seu coração a transbordar de bondade e inocência (imensa), a acolher e orientar os novos ricos, frequentar a sua mui nobre e ilustre casa. Os sorrisos sabiam a plástico, os abraços a metal. Eu sentia a crescente angústia da rapariga, um pássaro que antes voava e que agora tinha uma gaiola de ouro. A conta da felicidade estava a zeros! Ganhou medo ao amor, à amizade, a tudo o que pudesse ser nota disfarçada de sentimento. Mais um ano da vida dela, mais uma pipoca, era preciso fazer mais alguma coisa mas... o quê? Não conseguia fugir, os grilhões do comodismo prendiam-na e prenderam-na, mais um dia, e outro e mais uma pipoca, o balde estava a acabar e o sabor era sempre o mesmo. Nenhum. Olhei para baixo. Não havia pipocas. Olhei em volta, não havia público. Nem cadeiras. Olhei em frente... não havia ecrã. Nada de cinema. O filme era muito a sério, e nunca eu desejara tanto que não tivesse sido. E agora?
quarta-feira, 20 de junho de 2012
Não sei que dia é, não sei onde estou,
Alguém,
Quem sou eu?
A resposta vai para a sarjeta.
És o pulso mais firme e o beijo mais doce, indefinição de solução, tal como a época de jogos que nunca acaba com o mesmo vencedor.
Por isto é que eu nunca ganho.
Nunca chego lá.
Suspenso nesta brincadeira, bem que podia tirar umas férias, cansado de tentar saber aquilo que a sabedoria mata porque, exacto, não se pode saber.
Os sem-nome, vagos, ficam anónimos, e os sem-cara que vão para a maquilhagem.
Por favor diz-me só que não estou a perder demasiado tempo em finais felizes, e que a minha vida não depende da quantidade de amor que possas ou não ter por mim.
Aí em cima há tanto de que dependo e tanto que não entendo, decoro definições e penso que sou teu filho mas em vez de te mostrares mandam-me porta a porta para que o gato da família ataque ataque o meu fato.
O povo ignorante manda-me que volte e retorne e regresse, que fique de pé onde ficaste, mas quando foste tu que por cá caminhaste não se vendiam souvenirs de ti e do dom que nos deixaste nas lojas de quem se prefere ajoelhar e rezar em vez de ir, só ir, e ser.
Tiveste medo e o teu coração ficou vazio, mas acabaste o que começaste. Praticaste e ensaiaste, ensinaste, na tentativa de encontrar Deus, tal como eu. Antes que ele nos encontre a nós,
em palavras sujas
e sonhos envenenados
como as raparigas que brincam
com o coração dos namorados.
Tu só pedes uma coisa, e para mim, não é só fazer acreditar.
Diz-me, por favor, diz-me, que as minhas tentativas até podem nem ser, ser falhadas, que a minha vida não depende da quantidade de amor que possas ou não ter por mim, dependo tanto de ti e em vez de me deitar no teu colo estás sempre em guerra comigo...
eu sou para o estranho que está no céu, foi dele que nasci e para ele que vou
R.eserva I.mensa P.aradisíaca
Ah, eu desejo-te e é bom.
E o beijo, é só beijo, não há pulso firme.
Beijo doce...
ADeus.
quarta-feira, 30 de maio de 2012
O último adeus
Os 72 anos do Sr. Maximino Gomes não quiseram chegar aos 73. O Sr. Gomes, como era conhecido neste pequeno mundo da esquina do meu prédio, era o comerciante mais simpático da mercearia que pertence ao edifício da minha casa, simpatia que o deixava ver acima dos outros, apesar da sua corcunda já generosa. Não quero estar com falas mansas e escrever linhas de dor, afinal de contas, não me dava assim tanto com ele para sentir tristezas como as que por aí se vêem por cantores que entraram para os coros celestes e que de repente todos passaram a apreciar. Adiante.
Por uma questão de respeito, e para acompanhar a minha a minha mãe que, essa sim, se relacionava um pouco mais com o Sr. Gomes, fui ao seu velório. Percebo melhor os velórios que os funerais; um funeral é pintado de dor e de memórias apenas boas, mesmo que más houvessem, enquanto que os velórios são o adeus mais demorado e sentido e ainda que a alma tenha já partido para de onde veio, é legítimo que seja do corpo que nos despeçamos de vez, esse nunca mais o veremos, a alma, a alma ninguém sabe. Espero que sim, que lá nesse Céu que ninguém sabe o que é ou onde fica possamos ver todos e fazer tudo.
A capela mortuária tinha o cheirinho agradável a flores e a Igreja velha e a lágrimas sentidas, umas mais que outras, temo. Cumprimentei os familiares que conhecia das lides do "Era um café, por favor" ou "Bom dia Sr, Álvaro, como vai?". Da minha boca não saíram "os meus sentimentos" ou "os meus pêsames", defeito meu este de não conseguir dizer chavões inventados por alguém e que ambicionam oferecer por palavras aquilo que se dá em olhares, abraços, pensamentos e vá, lágrimas, se bem que também estas teimem em não sair pelos olhos (hei-de um dia perceber se sou mais insensível que os demais ou se apenas vendo os meus sentimentos um pouquinho mais caros).
Sentei-me. Choro aqui, conversa ali, e as memórias da esposa, que animada tanto quanto a situação e o local o permitiam lembrava o Sr. Gomes e o modo carinhoso como era tratado pela minha irmã, "Sr. Gominhos". Espero que um dia, no meu velório, as pessoas sejam obrigadas a conter o riso por meio de lágrimas enquanto lembram as minhas piadas, os meus disparates, o modo simplista e descontraído com que levo esta vida que todos teimam em carregar quando deve ser ela a a carregar-nos a nós. Mas estas linhas não são sobre mim, portanto avancemos.
O momento que me tocou surgiu quando entrou o Sr. Marcelino. O Sr. Marcelino, percebi depois, era talvez o melhor amigo do Sr. Gomes, daquelas amizades à vinho do Porto que dispensam os "Oh, gosto tanto de ti meu melhor amigo" e os "Amo-tes, és super importante para mim". Não, as suas declarações de amizade eterna baseavam-se nas idas do Sr. Marcelino à mercearia, logo pela manhã, para conversar com o seu camarada sobre tudo e mais alguma coisa, isto numa época em que pela manhã as pessoas mais idosas encontram muitas vezes como única companhia o Goucha e a Cristina.
O Sr. Marcelino entrou e, mal olhando para o local onde o corpo se encontrava, coberto por toalhas de linho, começou a chorar. Mas o seu choro dava dó; devido à sua avançada idade, o Sr. Marcelino não era capaz de soluçar como os outros. Normalmente, quando alguém chora desalmadamente, saem guinchos e gemidos em jeito agudo, doloroso, mas da boca do velhote amigo apenas saía uma respiração longa, cavernosa, vinda bem lá do fundo do coração. Parecia atacado por uma rouquidão imensa, e o seu choro mais parecido com tosse que outra coisa saía de cada vez que ganhava forças para novamente o soltar. O filho, preocupado com a saúde debilitada do pai, ciente de que emoções demasiadamente fortes poderiam deitar o pai na mesma cama que o Sr. Gomes, reconfortou e conduziu-o ao banco. Quase a sentar-se, o Sr. Marcelino fez um esforço hercúleo e avançou, como quem avança contra uma forte rajada de vento, até ao caixão. Destapou o pano que cobria a face e que muitos removem pela curiosidade da morte e nada mais, e olhou para o seu amigo. Aquela cara que antes sorria e lhe contava as novas da crise e do desporto, estava ali, branca e rígida, e assim ficaria, para sempre. O choro do homem, se antes era já profundo, assumiu ali um nível que não conseguirei escrever. Parecia um animal ferido, as fendas dos olhos confundiam-se com as longas rugas do seu rosto, e mal consigo imaginar o uivo que teria saído da sua boca se ele o conseguisse soltar. Uma outra senhora, que não percebi se era familiar ou não, insistiu que ele saísse, falando para ele como se tudo aquilo fosse reprovável. Legitimo o medo da perda de mais uma pessoa querida, mas sinceramente tudo aquilo me estava a custar engolir; a dor mais sincera, o adeus mais preciso, estava a ser reprimido de um modo cruel. Ninguém perguntou ao Sr. Marcelino com quem ele iria ter na manhã seguinte, que sentido teria a sua vida agora, ninguém ponderou se ele desejaria, de facto, acompanhar o Sr. Gomes, ou melhor, se uma despedida digna a demorada valeria o risco de isso acontecer. Eu respondo por ele, claro que sim.
O Sr. Marcelino lá saiu, para voltar pouco depois. Tentou destapar o lençol que cobria mesmo a carne do corpo, provavelmente para o beijar ou acariciar, mas mais uma vez foi impedido pela tal senhora. Que nojo! A mulher que ali estava sabe-se lá porquê, talvez por coscuvelhice e "Sim, eu gostava muito dele, nossa senhora, que tragédia", impedia que uma amizade sincera pudesse ser dignamente interrompida. O velhote ainda a tentou afastar por meio de gestos, mas neste mundo os sentimentos sinceros ainda muito dificilmente têm mais forças que as vontades alheias, fisicamente vigorosas.
O Sr. Marcelino saiu e voltou terceira vez, agora mais comedido, ciente que se "exagerasse" na dor seria novamente repelido. Limitou-se a aproximar do caixão, destapou a cara do Sr.Gomes e olhou para ele por breves segundos. Antes que mais uma vez fosse expulso, tapou-o e virou costas. Estacou no meio da capela, olhando primeiro para o chão e depois para o céu. Talvez estivesse a perguntar a Deus com quem comentaria agora o jogo de ontem, ou a menina jeitosa passava ali na rua. Ou talvez conversasse com o Sr. Gomes, ralhando com ele por meio de soluços. Ou então, se calhar, mirava a sua próxima morada, questionando-se se lá encontraria o seu amigo. Porque cá por baixo, as manhãs nunca mais serão as mesmas para o Sr. Marcelino.
A capela mortuária tinha o cheirinho agradável a flores e a Igreja velha e a lágrimas sentidas, umas mais que outras, temo. Cumprimentei os familiares que conhecia das lides do "Era um café, por favor" ou "Bom dia Sr, Álvaro, como vai?". Da minha boca não saíram "os meus sentimentos" ou "os meus pêsames", defeito meu este de não conseguir dizer chavões inventados por alguém e que ambicionam oferecer por palavras aquilo que se dá em olhares, abraços, pensamentos e vá, lágrimas, se bem que também estas teimem em não sair pelos olhos (hei-de um dia perceber se sou mais insensível que os demais ou se apenas vendo os meus sentimentos um pouquinho mais caros).
Sentei-me. Choro aqui, conversa ali, e as memórias da esposa, que animada tanto quanto a situação e o local o permitiam lembrava o Sr. Gomes e o modo carinhoso como era tratado pela minha irmã, "Sr. Gominhos". Espero que um dia, no meu velório, as pessoas sejam obrigadas a conter o riso por meio de lágrimas enquanto lembram as minhas piadas, os meus disparates, o modo simplista e descontraído com que levo esta vida que todos teimam em carregar quando deve ser ela a a carregar-nos a nós. Mas estas linhas não são sobre mim, portanto avancemos.
O momento que me tocou surgiu quando entrou o Sr. Marcelino. O Sr. Marcelino, percebi depois, era talvez o melhor amigo do Sr. Gomes, daquelas amizades à vinho do Porto que dispensam os "Oh, gosto tanto de ti meu melhor amigo" e os "Amo-tes, és super importante para mim". Não, as suas declarações de amizade eterna baseavam-se nas idas do Sr. Marcelino à mercearia, logo pela manhã, para conversar com o seu camarada sobre tudo e mais alguma coisa, isto numa época em que pela manhã as pessoas mais idosas encontram muitas vezes como única companhia o Goucha e a Cristina.
O Sr. Marcelino entrou e, mal olhando para o local onde o corpo se encontrava, coberto por toalhas de linho, começou a chorar. Mas o seu choro dava dó; devido à sua avançada idade, o Sr. Marcelino não era capaz de soluçar como os outros. Normalmente, quando alguém chora desalmadamente, saem guinchos e gemidos em jeito agudo, doloroso, mas da boca do velhote amigo apenas saía uma respiração longa, cavernosa, vinda bem lá do fundo do coração. Parecia atacado por uma rouquidão imensa, e o seu choro mais parecido com tosse que outra coisa saía de cada vez que ganhava forças para novamente o soltar. O filho, preocupado com a saúde debilitada do pai, ciente de que emoções demasiadamente fortes poderiam deitar o pai na mesma cama que o Sr. Gomes, reconfortou e conduziu-o ao banco. Quase a sentar-se, o Sr. Marcelino fez um esforço hercúleo e avançou, como quem avança contra uma forte rajada de vento, até ao caixão. Destapou o pano que cobria a face e que muitos removem pela curiosidade da morte e nada mais, e olhou para o seu amigo. Aquela cara que antes sorria e lhe contava as novas da crise e do desporto, estava ali, branca e rígida, e assim ficaria, para sempre. O choro do homem, se antes era já profundo, assumiu ali um nível que não conseguirei escrever. Parecia um animal ferido, as fendas dos olhos confundiam-se com as longas rugas do seu rosto, e mal consigo imaginar o uivo que teria saído da sua boca se ele o conseguisse soltar. Uma outra senhora, que não percebi se era familiar ou não, insistiu que ele saísse, falando para ele como se tudo aquilo fosse reprovável. Legitimo o medo da perda de mais uma pessoa querida, mas sinceramente tudo aquilo me estava a custar engolir; a dor mais sincera, o adeus mais preciso, estava a ser reprimido de um modo cruel. Ninguém perguntou ao Sr. Marcelino com quem ele iria ter na manhã seguinte, que sentido teria a sua vida agora, ninguém ponderou se ele desejaria, de facto, acompanhar o Sr. Gomes, ou melhor, se uma despedida digna a demorada valeria o risco de isso acontecer. Eu respondo por ele, claro que sim.
O Sr. Marcelino lá saiu, para voltar pouco depois. Tentou destapar o lençol que cobria mesmo a carne do corpo, provavelmente para o beijar ou acariciar, mas mais uma vez foi impedido pela tal senhora. Que nojo! A mulher que ali estava sabe-se lá porquê, talvez por coscuvelhice e "Sim, eu gostava muito dele, nossa senhora, que tragédia", impedia que uma amizade sincera pudesse ser dignamente interrompida. O velhote ainda a tentou afastar por meio de gestos, mas neste mundo os sentimentos sinceros ainda muito dificilmente têm mais forças que as vontades alheias, fisicamente vigorosas.
O Sr. Marcelino saiu e voltou terceira vez, agora mais comedido, ciente que se "exagerasse" na dor seria novamente repelido. Limitou-se a aproximar do caixão, destapou a cara do Sr.Gomes e olhou para ele por breves segundos. Antes que mais uma vez fosse expulso, tapou-o e virou costas. Estacou no meio da capela, olhando primeiro para o chão e depois para o céu. Talvez estivesse a perguntar a Deus com quem comentaria agora o jogo de ontem, ou a menina jeitosa passava ali na rua. Ou talvez conversasse com o Sr. Gomes, ralhando com ele por meio de soluços. Ou então, se calhar, mirava a sua próxima morada, questionando-se se lá encontraria o seu amigo. Porque cá por baixo, as manhãs nunca mais serão as mesmas para o Sr. Marcelino.
domingo, 20 de maio de 2012
As aparências iludem
Entrei e lá estava ele. Arrogante, altivo, com um olhar de desdém que me empurrava para uma linha abaixo, muito abaixo, da dele, ainda que a sua vista encarasse a minha de frente. Grande parte dessa atitude devia-se ao facto de vestir a mesma roupa que eu, a roupa que deveria mostrar a sua pretensa superioridade, mas bolas, nem os sapatos. Desviei o olhar e ele fez o mesmo, como se o magnetismo invertido nos empurrasse para outras paisagens mas não para outros pensamentos; quem era ele para me olhar assim? Quem lhe dera a ele ser como eu, beijar-me os pés que pisar o chão que eu piso com os pés que certamente caminharam mais que os dele. Horrível este exercício de julgamento sem provas nem advogados e com um juiz apenas, o da circunstância. Odiei-o pelo facto de me mostrar ódio e asco. Olhei-o de novo. A chama raivosa bailava-lhe na íris, ah, que fúria a minha, mas quem é este ser que arranca a predisposição de amar da essência humana para me querer mal só por querer ser maior que eu. Não me contive, cuspi-lhe na cara. Sujei o espelho.
quarta-feira, 9 de maio de 2012
Da escada
A brisa que bate na janela é de ventos de maio, mas não sei em que mês estou. Nem quem sou, nem de onde venho. Sei tanto quanto sabia quando nasci, quem me dera ter sabido mais nessa altura. É que agora, nem respirar. Estás de frente para mim e nem no Japão estarias mais longe. Na cozinha, os nossos amigos riem descontraídos, quando a vida pouco pesa, a gargalhada é fácil. E tu, sorris porquê? Nesta sala quente e castanha, levas-me por tornados frios de cores e mal sabes tu que o sofá é para mim um tapete voador e os teus olhos quarenta ladrões. Dizer-to, eu, nunca. Para se dizer alguma coisa a alguém, em segredo, é fundamental que o seu ouvido esteja à altura dos nossos lábios e há muito que percebi que, não sendo tu mais alta que eu, estás muito, muito acima. O amor é uma escada que nem desde nem sobe, ou melhor, pode subir e pode descer, não importa, apenas importa que quem nela caminha pise o mesmo degrau, por mais parco em espaço que ele seja. Se for mais acima, pode tropeçar, se vier abaixo, não vê nem quer o mesmo. Eles voltaram à sala, façamos o brinde. Se é maio, parece-me janeiro, esse que vê o velho e o novo. Eu não vejo nada, ou talvez veja demais e pouco possa tocar. Beijar.
sexta-feira, 13 de abril de 2012
Porque hoje foi dia
Levantei voo e o céu abriu-se, tal qual os livros que eu lia quando não tinha idade para ser preguiçoso dos olhos. Uma música de amor silenciosa começou a tocar no ar, vinda de dentro. Partes de mim que não as pernas iniciaram a maratona a passo de corrida de 100 metros. Barreiras, porque a cada batida logo outra era falhada, porque as coisas certinhas foram feitas pelo Homem mas não são do Homem, pelo menos não de um que tenha pegado numa rosa pouco se importando com os espinhos, afinal, o sangue corre e aquece. Os olhos brilhavam para dentro, olhavam a alma, as almas, bem, a alma, que duas fazem uma. Uma só. O tempo, esse que nunca pára, foi obrigado a baixar os braços e a render-se a uma evidência: o segundos valem para quem os conta, e quando se voa, só se deseja que seja para sempre, e o segredo para se viver para sempre é contar a vida por respirações, peles de galinha e vontades alegres de chorar. De sair, de ter frio, de correr, de apanhar chuva, até aquele ponto de ter um nó de felicidade na garganta que logo se transforma em sorriso de estúpido, de parvo, de idiota. Se existem mais pessoas, são formigas num sopé de montanha que começa a subir quando se começa a descer à idade da inocência, da ingenuidade, da pequenez tão grande. Confuso? É tudo uma coisa apenas, tudo isto é um beijo.
sexta-feira, 6 de abril de 2012
Ementa
A vida pode ser tudo
E com tudo pode ser comparada
Partida
Corrida
Chegada
Falador calado
Ou poeta mudo.
A vida pode ser uma moldura
Virada para trás, lembrante
Um pensamento morto e errante
Que só lembra,
Fecha
E não vive.
A vida pode ser uma chávena
Cheia de um néctar delicioso
E se eu o beber calmo, preguiçoso
Saboreio cada gota como última.
Ou bebê-lo de um trago
E ter para sempre o sabor amargo
No tempo em que depois não bebo.
A vida pode ser uma flor
Ter cor
E cheiro e companhia!
Enfeitar sem receber
Ser arrancada para sorriso ver
Desinteressada
Do Sol
Para o Sol.
A vida pode ser um jogo
Mais de bola ou mais de gravata
De mão dada ou de mata-mata
De uma doce vitória
Ou de um fim sem glória
Para quem ganha sem ganhar.
A vida pode ser tabaco
E ser fumada sem em nada pensar
Só fazer, não preparar
O hoje é hoje, pois
O amanhã
Esse
Vem depois.
(E que não venha, a saudade é só para o ontem)
A vida pode ser um copo
Vazio de tudo
Ou cheio de nada
O copo é nosso
E a torneira
Nunca é fechada.
A vida pode ser um relógio
Passar devagarinho
Malandra se a passo sozinho
Fugaz se acompanhado.
E o relógio pode parar
Seja a hora da morte depois
Da hora do despertar.
A vida pode ser um lápis
E desenhar vidas,
Sem tinta.
Um lápis com um coração que sinta
E bombeie
Sincero
E minta.
A vida pode ser uma cortina
E a paisagem, a mais bela.
Cortina fechada, interior quente
Mas a alma o que não vê sente
E sonha com o que há para além dela.
A vida pode ser uma porta
Aberta
Torta ou certa.
Espaço há, haja vontade
De sair, saltar a grade!
Ficar
Ficar é que não.
A vida pode ser tudo.
O que estás aí a fazer?
E com tudo pode ser comparada
Partida
Corrida
Chegada
Falador calado
Ou poeta mudo.
A vida pode ser uma moldura
Virada para trás, lembrante
Um pensamento morto e errante
Que só lembra,
Fecha
E não vive.
A vida pode ser uma chávena
Cheia de um néctar delicioso
E se eu o beber calmo, preguiçoso
Saboreio cada gota como última.
Ou bebê-lo de um trago
E ter para sempre o sabor amargo
No tempo em que depois não bebo.
A vida pode ser uma flor
Ter cor
E cheiro e companhia!
Enfeitar sem receber
Ser arrancada para sorriso ver
Desinteressada
Do Sol
Para o Sol.
A vida pode ser um jogo
Mais de bola ou mais de gravata
De mão dada ou de mata-mata
De uma doce vitória
Ou de um fim sem glória
Para quem ganha sem ganhar.
A vida pode ser tabaco
E ser fumada sem em nada pensar
Só fazer, não preparar
O hoje é hoje, pois
O amanhã
Esse
Vem depois.
(E que não venha, a saudade é só para o ontem)
A vida pode ser um copo
Vazio de tudo
Ou cheio de nada
O copo é nosso
E a torneira
Nunca é fechada.
A vida pode ser um relógio
Passar devagarinho
Malandra se a passo sozinho
Fugaz se acompanhado.
E o relógio pode parar
Seja a hora da morte depois
Da hora do despertar.
A vida pode ser um lápis
E desenhar vidas,
Sem tinta.
Um lápis com um coração que sinta
E bombeie
Sincero
E minta.
A vida pode ser uma cortina
E a paisagem, a mais bela.
Cortina fechada, interior quente
Mas a alma o que não vê sente
E sonha com o que há para além dela.
A vida pode ser uma porta
Aberta
Torta ou certa.
Espaço há, haja vontade
De sair, saltar a grade!
Ficar
Ficar é que não.
A vida pode ser tudo.
O que estás aí a fazer?
domingo, 26 de fevereiro de 2012
Farewell
Houve uma idade em que eu não usava relógio, uma época em que o tempo era contado por joelhos esfolados, desenhos animados e amores Iô-Iô. E a esse tempo volto de tempos a tempos, graças a mãos dadas que me levam ao tempo sem tempo. Sinto saudades dessas alturas, tanto aquelas de há anos como as que viveram nos meses mais chegados, meses em que abraço a ternura de não se saber aquilo que se vê, nem o que se sente. Só se vê e só se sente. Mas cresço e em vez de mais vida, lá se vai a vida. A luz dos anos sós faz sombra do meu corpo sozinho, que nada partilha com ninguém para além de sonhos que ficaram enterrados algures em locais que visitarei à procura do que perdi e com os quais tenho uma cumplicidade estranha; levei-lhes os sonhos, sonhei neles e depois de os perder, choro aos seus ombros, e eles mais não respondem que uma sonora gargalhada.
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012
Um dia
Se um dia a areia for mais forte que o sangue, eu vou parar e deixá-los correr. Se um dia o rio fluir com tanta força que vire a jangada e nos leve para margens opostas, eu vou parar. Se o relógio passar e eu não te puder beijar, até que decidas que queres mais dos lábios que versos de amor distantes, eu vou parar. Se o pêndulo deixar de medir segundos e passar a ser uma guilhotina angustiante, eu vou parar. E esperar. E vão ser segundos e minutos e horas e dias e meses, porra, poderão ser anos, mas o tempo vai por mim passar como o vento que se sente mas não move. Os cabelos podem ficar brancos e a pele enrugada, mas cá dentro a cor é a mesma, e só sem tempo o tempo importa, por deixar de importar. Porque se existe, de facto, uma coisa maior que outra, ei-la: o que sinto é maior do que o tempo que passarei a sentir.
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
Amor feito
Pedaços de baton e gravata
Pelo chão,
Máscaras que foram e encantaram
E já lá vão.
Agora só a alma nua
Como os corpos quentes que se amam.
Um rio de prazer
A solidão que morre
Amor a acontecer.
Não há adeus porque tudo é eterno
E terno.
Numa pequena cama num pequeno mundo
Há tudo o que é preciso
E a noite, amiga
As estrelas e a lua aos lençóis liga
E abre-se num misterioso e largo sorriso.
Pelo chão,
Máscaras que foram e encantaram
E já lá vão.
Agora só a alma nua
Como os corpos quentes que se amam.
Um rio de prazer
A solidão que morre
Amor a acontecer.
Não há adeus porque tudo é eterno
E terno.
Numa pequena cama num pequeno mundo
Há tudo o que é preciso
E a noite, amiga
As estrelas e a lua aos lençóis liga
E abre-se num misterioso e largo sorriso.
terça-feira, 10 de janeiro de 2012
A ponte a arder
Estava sozinho numa ponte
E essa ponte era de madeira.
E essa ponte de madeira ardia.
E já contigo, eu só, fugia
Da morte que, do passado, era certeira.
Abaixo de nós só escuridão cerrada
Um vazio de se ser e de sentir;
E cada corda ou madeiro despedaçado
Era o fim que era contemplado
A solidão, como tigre, a rugir.
Queria o meu coração o teu agarrar
Mas a confiança era mais frágil que o carvão.
A ponte da amizade para o amor é traiçoeira:
E se me agarrasse ao ar? Viver? De que maneira?
Antes que servisse a morte de consolação.
A ponte desabou, por fim
E em queda livre, senti pedido o teu desejo.
Daí a agarrar foi um momento
Caímos, juntos, e o não lamento
Estava seguro pelas cordas de um beijo.
E essa ponte era de madeira.
E essa ponte de madeira ardia.
E já contigo, eu só, fugia
Da morte que, do passado, era certeira.
Abaixo de nós só escuridão cerrada
Um vazio de se ser e de sentir;
E cada corda ou madeiro despedaçado
Era o fim que era contemplado
A solidão, como tigre, a rugir.
Queria o meu coração o teu agarrar
Mas a confiança era mais frágil que o carvão.
A ponte da amizade para o amor é traiçoeira:
E se me agarrasse ao ar? Viver? De que maneira?
Antes que servisse a morte de consolação.
A ponte desabou, por fim
E em queda livre, senti pedido o teu desejo.
Daí a agarrar foi um momento
Caímos, juntos, e o não lamento
Estava seguro pelas cordas de um beijo.
Estrelas cadentes
Podíamos era passar menos tempo a pedir desejos e mais a empenhar-nos por ser o desejo concretizado de alguém.
domingo, 8 de janeiro de 2012
Dois desejos
Era uma vez uma doninha e uma rapariga. Para além de ambas falarem, que não seria caso digno de nota se uma delas não fosse de facto uma doninha, a única coisa que elas tinham em comum era o fracasso no sonho das suas vidas. A menina, que vivia numa aldeia muito longe daqui (onde quer que esteja a ser lido este conto, será sempre muito longe daqui), desejava ter um iate enorme, para poder partir à descoberta do mundo e ir reunindo amizades, pois na sua terra os habitantes eram muito idosos e nunca dali saíra. Quando à doninha, ansiava por encontrar um bonito ornamento de cristal com que se pudesse enfeitar, pois o agradável aroma que costumava exalar (note-se aqui o uso da ironia) afastava qualquer hipótese de relacionamento. De facto, a floresta onde vivia (perto da aldeia da rapariga) era já quase inabitada, pobre doninha. E assim a nostalgia pautava a existência das pobres criaturas, como se fosse possível haver saudade do que nunca se teve.
Um dia, a menina resolveu sair à rua e, olhando para a floresta, algo a chamou, como se o verde das árvores de repente se tivesse transformado em esperança profetisa e alguma coisa lhe dissesse que ali encontraria algo. Não um iate, claro, mas algo. E lá foi (ainda bem que, nestas alturas, não existem flores para regar ou batatas para descascar, o que seria dos contos fantásticos se as cinzentas lides domésticas entrassem na equação), toda contente, embrenhando-se bosque dentro.
Andou, andou, andou. Nada encontrava, talvez porque seja mais complicado quando não se sabe o que se procura. A certa altura, sentiu um cheiro estranho no ar; olhou em volta e lá a viu, sentada numa pedra, a nossa amiga doninha. Fez tenção de se aproximar, ao que a doninha avisou qualquer coisa do género, O cheiro piora com a proximidade. Mas a rapariga dava passos pequenos e seguros, descobrindo aquele cheiro aos poucos, e ainda que a sua repugnância fosse inegável, não deixava de ser suportável. Daí a nada, estava sentada ao lado da doninha, como se também ela tivesse o seu próprio defeito nauseabundo, uma tristeza não cheirada pelo nariz, mas pelos olhos, canal directo ao coração. Aguentas o cheiro?, perguntou o animal, Sim, não tem nada de mal, não te preocupes, respondeu a pequena. Porque estás aqui sentada? Estava para aqui a pensar para com os meus botões e estava a perceber que não tenho botões no momento em que tu chegaste. Se não tens botões, pensa para comigo, sugeriu a menina. Bem, começou a doninha, precisava mesmo mesmo de um feiticeiro qualquer. Não fazes bruxedos, não? Não, mas também me dava jeito um, informou a rapariga, Achas que está algum debaixo dessa pedra? Definitivamente não, e olha que eu sou uma doninha que usa advérbios de modo, saberia se um feiticeiro estivesse escondido nesta pedra. Então, disse a rapariga, já zangada, Vamos procurar um! Aí sentada é que não o encontras.
E foram as duas pela floresta, à procura de um feiticeiro qualquer. O dia avançou e a noite caiu sem que o encontrassem. Procuraram, procuraram, voltaram a procurar, mas embrenharam-se tanto no bosque que as árvores tapavam o pouco luar que lhes ia alumiando o caminho, pelo que pararam. Conversaram sobre os seus sonhos, aquilo que desejavam do feiticeiro qualquer; a doninha contou que quando conseguisse o seu ornamento de cristal iria sair daquela floresta e arranjaria um monte de amigos, também eles giros e enfeitados, que não notassem o seu mau cheiro no meio de tanta beleza cristalina. A rapariga, por outro lado, falou no iate pelo qual ansiava, e explicou que com ele visitaria o mundo inteiro e que em cada país faria um amigo e que o convidaria a viajar consigo na embarcação, tanto que a certa altura o próprio barco fosse um mundo em ponto pequeno.
Enquanto sonhavam e suspiravam, ouviram o crepitar de fogo; ao principio o som parecia apenas ramos de árvore a partir com a força do vento, mas depois lembraram-se que não havia vento e foram investigar, até que chegaram a uma clareira. Nessa clareira, um velho de rosto carrancudo parecia meditar em frente a uma fogueira. Tudo no homem era singular; vestia uma túnica longa e branca, desfeita nas pontas pelo tempo, estava sentado numa pose muito estranha e a barba devia ser do comprimento das primaveras que já contava. A doninha e a rapariga aproximaram-se, movidas pela curiosidade e pelo desejo: Seria aquele um feiticeiro qualquer? Sim, sou, disse o velho, sem esperar pergunta. E sei o que pretendem. E podes dar-nos isso?, perguntou a doninha, Posso dar-vos o quê?, cuspiu o velho, Ora, respondeu a menina, aquilo que pretendemos. O que é que vocês pretendem?
O homem devia ser maluco, não dizia coisa com coisa. Afinal que raio de feiticeiro era aquele? Já desanimadas, falaram-lhe do iate e do ornamento de cristal, ao que o velho escutou, atento, ao mesmo tempo que meneava a cabeça em sinal de desaprovação. Então, concluiu ele, Eu sei o que vocês pretendem melhor do que vocês mesmas. Tomem. Passou-lhes para as mãos dois bocados de cartão cobertos por uma camada prateada. Uma raspadinha para cada uma. Raspem, informou ele, E se nas raspadinhas aparecer três vezes o desenho desse vosso sonho, então ele será vosso. E desapareceu.
Esperançosas mas ao mesmo tempo desconfiadas, as duas personagens sentaram-se na clareira com as suas raspadinhas. Os cartões estavam delineados de modo a haver uma divisão em três partes, cada uma delas escondendo os desenhos. Cada uma delas raspou dois e, para sua surpresa, em cada raspadinha calhou um par de desenhos correspondentes ao desejo do seu portador: à doninha um par de ornamentos de cristal e à rapariga dois iates. Ena, isto está a correr bem, não está?, perguntou a rapariga, Sim, parece que sim, concordou a doninha. Nenhuma delas parecia assim tão animada. Pareciam recear o que estava por detrás da terceira parte. No fundo da cabeça de cada uma, corriam muitos e muitos pensamentos, escondidos por uma fina camada de cor de prata. Raspamos ao mesmo tempo?, sugeriu o animal, Sim, aceitou a menina.
1, 2, 3 e... surpresa. No cartão da doninha apareceu um iate e no da rapariga um ornamento de cristal. Não havia nada para ninguém. Olharam uma para a outra e perceberam; momentos antes de rasparem a derradeira parte, desejaram no fundo do coração que não lhes calhasse a combinação vencedora. Tinham encontrado tudo aquilo que queriam sem precisarem de iates caros ou ornamentos exuberantes, a única coisa que fizeram foi sonhar e por pernas ao caminho. Os cartões combinados dariam para concretizar os sonhos, e a ideia era essa: juntas, teriam toda a amizade de que necessitavam, e juntas podiam descobrir o mundo, sem medo de solidão ou cheiros desagradáveis.
Um dia, a menina resolveu sair à rua e, olhando para a floresta, algo a chamou, como se o verde das árvores de repente se tivesse transformado em esperança profetisa e alguma coisa lhe dissesse que ali encontraria algo. Não um iate, claro, mas algo. E lá foi (ainda bem que, nestas alturas, não existem flores para regar ou batatas para descascar, o que seria dos contos fantásticos se as cinzentas lides domésticas entrassem na equação), toda contente, embrenhando-se bosque dentro.
Andou, andou, andou. Nada encontrava, talvez porque seja mais complicado quando não se sabe o que se procura. A certa altura, sentiu um cheiro estranho no ar; olhou em volta e lá a viu, sentada numa pedra, a nossa amiga doninha. Fez tenção de se aproximar, ao que a doninha avisou qualquer coisa do género, O cheiro piora com a proximidade. Mas a rapariga dava passos pequenos e seguros, descobrindo aquele cheiro aos poucos, e ainda que a sua repugnância fosse inegável, não deixava de ser suportável. Daí a nada, estava sentada ao lado da doninha, como se também ela tivesse o seu próprio defeito nauseabundo, uma tristeza não cheirada pelo nariz, mas pelos olhos, canal directo ao coração. Aguentas o cheiro?, perguntou o animal, Sim, não tem nada de mal, não te preocupes, respondeu a pequena. Porque estás aqui sentada? Estava para aqui a pensar para com os meus botões e estava a perceber que não tenho botões no momento em que tu chegaste. Se não tens botões, pensa para comigo, sugeriu a menina. Bem, começou a doninha, precisava mesmo mesmo de um feiticeiro qualquer. Não fazes bruxedos, não? Não, mas também me dava jeito um, informou a rapariga, Achas que está algum debaixo dessa pedra? Definitivamente não, e olha que eu sou uma doninha que usa advérbios de modo, saberia se um feiticeiro estivesse escondido nesta pedra. Então, disse a rapariga, já zangada, Vamos procurar um! Aí sentada é que não o encontras.
E foram as duas pela floresta, à procura de um feiticeiro qualquer. O dia avançou e a noite caiu sem que o encontrassem. Procuraram, procuraram, voltaram a procurar, mas embrenharam-se tanto no bosque que as árvores tapavam o pouco luar que lhes ia alumiando o caminho, pelo que pararam. Conversaram sobre os seus sonhos, aquilo que desejavam do feiticeiro qualquer; a doninha contou que quando conseguisse o seu ornamento de cristal iria sair daquela floresta e arranjaria um monte de amigos, também eles giros e enfeitados, que não notassem o seu mau cheiro no meio de tanta beleza cristalina. A rapariga, por outro lado, falou no iate pelo qual ansiava, e explicou que com ele visitaria o mundo inteiro e que em cada país faria um amigo e que o convidaria a viajar consigo na embarcação, tanto que a certa altura o próprio barco fosse um mundo em ponto pequeno.
Enquanto sonhavam e suspiravam, ouviram o crepitar de fogo; ao principio o som parecia apenas ramos de árvore a partir com a força do vento, mas depois lembraram-se que não havia vento e foram investigar, até que chegaram a uma clareira. Nessa clareira, um velho de rosto carrancudo parecia meditar em frente a uma fogueira. Tudo no homem era singular; vestia uma túnica longa e branca, desfeita nas pontas pelo tempo, estava sentado numa pose muito estranha e a barba devia ser do comprimento das primaveras que já contava. A doninha e a rapariga aproximaram-se, movidas pela curiosidade e pelo desejo: Seria aquele um feiticeiro qualquer? Sim, sou, disse o velho, sem esperar pergunta. E sei o que pretendem. E podes dar-nos isso?, perguntou a doninha, Posso dar-vos o quê?, cuspiu o velho, Ora, respondeu a menina, aquilo que pretendemos. O que é que vocês pretendem?
O homem devia ser maluco, não dizia coisa com coisa. Afinal que raio de feiticeiro era aquele? Já desanimadas, falaram-lhe do iate e do ornamento de cristal, ao que o velho escutou, atento, ao mesmo tempo que meneava a cabeça em sinal de desaprovação. Então, concluiu ele, Eu sei o que vocês pretendem melhor do que vocês mesmas. Tomem. Passou-lhes para as mãos dois bocados de cartão cobertos por uma camada prateada. Uma raspadinha para cada uma. Raspem, informou ele, E se nas raspadinhas aparecer três vezes o desenho desse vosso sonho, então ele será vosso. E desapareceu.
Esperançosas mas ao mesmo tempo desconfiadas, as duas personagens sentaram-se na clareira com as suas raspadinhas. Os cartões estavam delineados de modo a haver uma divisão em três partes, cada uma delas escondendo os desenhos. Cada uma delas raspou dois e, para sua surpresa, em cada raspadinha calhou um par de desenhos correspondentes ao desejo do seu portador: à doninha um par de ornamentos de cristal e à rapariga dois iates. Ena, isto está a correr bem, não está?, perguntou a rapariga, Sim, parece que sim, concordou a doninha. Nenhuma delas parecia assim tão animada. Pareciam recear o que estava por detrás da terceira parte. No fundo da cabeça de cada uma, corriam muitos e muitos pensamentos, escondidos por uma fina camada de cor de prata. Raspamos ao mesmo tempo?, sugeriu o animal, Sim, aceitou a menina.
1, 2, 3 e... surpresa. No cartão da doninha apareceu um iate e no da rapariga um ornamento de cristal. Não havia nada para ninguém. Olharam uma para a outra e perceberam; momentos antes de rasparem a derradeira parte, desejaram no fundo do coração que não lhes calhasse a combinação vencedora. Tinham encontrado tudo aquilo que queriam sem precisarem de iates caros ou ornamentos exuberantes, a única coisa que fizeram foi sonhar e por pernas ao caminho. Os cartões combinados dariam para concretizar os sonhos, e a ideia era essa: juntas, teriam toda a amizade de que necessitavam, e juntas podiam descobrir o mundo, sem medo de solidão ou cheiros desagradáveis.
sexta-feira, 6 de janeiro de 2012
Que nem a morte vos separe, amén
Vasculhei as gavetas do teu quarto, à espera de te encontrar. Procurei-te debaixo da cama, atrás das cortinas, debaixo do tapete. Não estavas em lado nenhum. Pela janela olhei o céu, e nem daí sorriste para mim. A cidade cheirava a frio, ou era o meu coração, não sei. Voltei o meu olhar para dentro. Penduradas na porta do teu roupeiro estavam as sapatilhas de ballet, as tuas sapatilhas de ballet. Tuas. Peguei nelas. Os teus pés, outrora quentes e dançantes, tinham calçado aquelas sapatilhas. Engraçado. Tinha-las quando te vi pela primeira vez, no espectáculo da escola. Lembro-me perfeitamente do dia, da hora, do segundo e do que senti, talvez porque numa outra dimensão qualquer ainda lá estou especado, vendo-te dançar, o teu corpo flutuante ao som da doce música, ou seria o contrário, talvez por uma vez fosse a tua dança a dar origem à canção. Se a paixão nasce e tem pais, a mãe seria a tua dança. Foi ela quem te apresentou a mim. O pai, bem, os pais, seriam os teus olhos, de um azul que mais parecia pintado a lápis de carvão numa folha de papel de gente. Ah, que saudades, que saudades, o peito aperta de uma maneira que parece querer desaparecer dentro de si mesmo. Tentei distrair-me e explorar o teu quarto de novo. Era impossível não te imaginar ali comigo, o teu cheiro, a tua pele suavizada pelo creme nívea (o creme na prateleira olhava-me de gozo, sacana, vai embora!) , os teus lábios. Porque não levaste tudo contigo? Tenho tantas lembranças em mim, não precisava de recordações fora. De repente, vi-o. O diário. Conheci-te por dentro e por fora, mas no diário, nesse, nunca me deixaste tocar. Abri-o, da mesma forma malandra que uma criança rouba um chocolate, não por malícia, por desafio e reconforto. Procurei uma página ao calhas, desde que fosse escrita por ti, servia...
Querido diário,
Hoje o João beijou-me. Sim, sei que não foi a primeira vez, mas parecia! Estávamos num miradouro com uma vista brutal, sim, ele levou-me lá, e falámos muito. Falámos sobre o futuro, os filhos, a casa, o carro, até sobre a marca de leite que íamos comprar mais regularmente! De repente, ele olhou-me nos olhos, como se me estivesse a ler a alma, e disse que me amava. Parecia um menino pequeno, inocente. E foi como uma criança que ele me beijou, um beijo molhado, um carinho dos deuses, e logo depois abraçou-me. Éramos um. Se existissem dúvidas, morreram ali; o João é o homem da minha vida, é com ele que vou casar, e olha, não me importava de ser imortal com ele.
Não consegui ler mais. As lágrimas corriam à mesma velocidade que o filme daquele dia me passava pela cabeça; mas não eram lágrimas de dor, de tristeza, não; estava contente. Pessoas morrem velhas sem terem descoberto o amor, depois de o procurarem nos confins no mundo. Eu descobri-o, e descobri-o muitas vezes, num palco de dança, num quarto, num miradouro, e em muitos outros sítios. Enquanto pensava nisto, uma fotografia caiu do diário. Éramos nós e estávamos a sorrir para a máquina. Não sei onde estás, agora, tal como não sabia de ti antes de te conhecer. Mas fizemos uma pausa na vida, eu e tu, e nessa pausa descobrimos algo que a morte não pode nunca separar.
quinta-feira, 5 de janeiro de 2012
O ladrão
O ladrão vagueia de noite
Quando os candeeiros sussurram luz.
Não se importa com vida ou coração
Ou com pobre decoração
O que ele só quer é roubar.
Assalta-me a cama que mais me protege
Que o quarto
Leva-me o que tenho
Que não é nada
Leva-me a alma, inacabada
Leva-me o fogo e deixa o lenho.
Que ladrão é este
Que até o meu amor leva consigo?
Não tomado
Dado como amigo.
Ladrão de meia-noite, que me inspira
Não é maldade o que respira
É sonho adocicado.
Oh ladrão, regressa
Volta a quem te deu a vida
E eis que verdade esquecida
Na minha mente tropeça:
O ladrão é meu
Porque o ladrão sou eu
Que fujo noite dentro, vagabundo
Por entre os poemas nocturnos fecundo
Letras que hão-de rimar.
Porque eu só quero sair
E roubar
Roubar matéria com que se escreva
Mas ai de mim que me atreva
A minha cama abandonar.
E o meu eu ladrão vai ficar de mim órfão
Sozinho há-de viver
Amar, andar, sofrer
Tudo olhar, tudo escrever
E eu aqui, como é de lei.
(Se ao menos eu tivesse asas,
Ou este chão fosse de brasas...)
Hoje em dia escreve-se sobre tudo
É contigo que limpo o mal do meu pequeno mundo. Se fico muito tempo sem tratar de ti, ficas duro e frio, como se amuasses, mas eu não tenho a culpa! Eu sei, tu também não. E sei que só estás bem enquanto fazes bem aos outros, é simultâneo, e ninguém te dá valor por isso. Por vezes sinto que nasceste de propósito para essa vida de servidão, outras penso que vieste de um outro fazer mais digno e vistoso. Não sei. De qualquer das maneiras, a verdade é que te dão mais valor antes dessa vida de entrega do que depois, quando o brilho sai todo de ti para quem o dás. Não posso fazer nada, de facto. Mas agradece-me pelo menos por este textinho, olha que nunca ninguém escreveu sobre panos da loiça.
quarta-feira, 4 de janeiro de 2012
Perdoa-me
Esqueci-me de ti. Esqueci-me das letras, das palavras, das frases, não daquelas que já escrevi mas sim daquelas que ainda tenho para tecer, como aquelas que agora desenho como um menino que foi apanhado pela professora a roubar um pau de giz e descobria a vergonha. Há um problema na nossa relação, sabes? Os beijos que damos são só de mim para ti, só tocas os meus lábios se os abrir para ti e por vezes perco-me nos beijinhos da vida que não é de papel. É mais platónico que físico, o nosso amor, porque muitas vezes penso em ti e desejo-te e sonho contigo mas não me dá para te vir abraçar. Não me dá, que expressão pachorrenta e nojenta, como esta rima podre que não consegui fintar. Há outro problema no nosso casamento. Nunca te poderei perder. Se me cortassem as mãos e eu mais não pudesse acariciar-te a essência, talvez aí mais que nunca eu ansiasse por me deitar na cama contigo. Mas ninguém me vai cortar as mãos e para sempre o nós será um Sol que está lá sempre mas cada dia nasce ou não conforme os ponteiros ao acordar e as folhas da agenda. Hoje, que resolvi vir fazer-te esta declaração, li pelo caminho um poema sobre mortes lentas. Não quero morrer antes de fechar os olhos para o sono eterno e a minha vida és tu. Era agora que juraria nunca mais te deixar e que amanhã viria fazer-te a corte à tua janela, mas não sei como nascerá o Sol, para mim, amanhã. Perdoa-me que te ame assim, mas é o amor que tenho para te dar, é a água que tenho para te regar e és tu uma flor que não pode nunca murchar, a menos que arrancada. Nunca vais deixar a terra, só espero um dia poder afogar-te como outrora fiz.
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