domingo, 8 de janeiro de 2012

Dois desejos

Era uma vez uma doninha e uma rapariga. Para além de ambas falarem, que não seria caso digno de nota se uma delas não fosse de facto uma doninha, a única coisa que elas tinham em comum era o fracasso no sonho das suas vidas. A menina, que vivia numa aldeia muito longe daqui (onde quer que esteja a ser lido este conto, será sempre muito longe daqui), desejava ter um iate enorme, para poder partir à descoberta do mundo e ir reunindo amizades, pois na sua terra os habitantes eram muito idosos e nunca dali saíra. Quando à doninha, ansiava por encontrar um bonito ornamento de cristal com que se pudesse enfeitar, pois o agradável aroma que costumava exalar (note-se aqui o uso da ironia) afastava qualquer hipótese de relacionamento. De facto, a floresta onde vivia (perto da aldeia da rapariga) era já quase inabitada, pobre doninha. E assim a nostalgia pautava a existência das pobres criaturas, como se fosse possível haver saudade do que nunca se teve.
Um dia, a menina resolveu sair à rua e, olhando para a floresta, algo a chamou, como se o verde das árvores de repente se tivesse transformado em esperança profetisa e alguma coisa lhe dissesse que ali encontraria algo. Não um iate, claro, mas algo. E lá foi (ainda bem que, nestas alturas, não existem flores para regar ou batatas para descascar, o que seria dos contos fantásticos se as cinzentas lides domésticas entrassem na equação), toda contente, embrenhando-se bosque dentro.
Andou, andou, andou. Nada encontrava, talvez porque seja mais complicado quando não se sabe o que se procura. A certa altura, sentiu um cheiro estranho no ar; olhou em volta e lá a viu, sentada numa pedra, a nossa amiga doninha. Fez tenção de se aproximar, ao que a doninha avisou qualquer coisa do género, O cheiro piora com a proximidade. Mas a rapariga dava passos pequenos e seguros, descobrindo aquele cheiro aos poucos, e ainda que a sua repugnância fosse inegável, não deixava de ser suportável. Daí a nada, estava sentada ao lado da doninha, como se também ela tivesse o seu próprio defeito nauseabundo, uma tristeza não cheirada pelo nariz, mas pelos olhos, canal directo ao coração. Aguentas o cheiro?, perguntou o animal, Sim, não tem nada de mal, não te preocupes, respondeu a pequena. Porque estás aqui sentada? Estava para aqui a pensar para com os meus botões e estava a perceber que não tenho botões no momento em que tu chegaste. Se não tens botões, pensa para comigo, sugeriu a menina. Bem, começou a doninha, precisava mesmo mesmo de um feiticeiro qualquer. Não fazes bruxedos, não? Não, mas também me dava jeito um, informou a rapariga, Achas que está algum debaixo dessa pedra? Definitivamente não, e olha que eu sou uma doninha que usa advérbios de modo, saberia se um feiticeiro estivesse escondido nesta pedra. Então, disse a rapariga, já zangada, Vamos procurar um! Aí sentada é que não o encontras.
E foram as duas pela floresta, à procura de um feiticeiro qualquer. O dia avançou e a noite caiu sem que o encontrassem. Procuraram, procuraram, voltaram a procurar, mas embrenharam-se tanto no bosque que as árvores tapavam o pouco luar que lhes ia alumiando o caminho, pelo que pararam. Conversaram sobre os seus sonhos, aquilo que desejavam do feiticeiro qualquer; a doninha contou que quando conseguisse o seu ornamento de cristal iria sair daquela floresta e arranjaria um monte de amigos, também eles giros e enfeitados, que não notassem o seu mau cheiro no meio de tanta beleza cristalina. A rapariga, por outro lado, falou no iate pelo qual ansiava, e explicou que com ele visitaria o mundo inteiro e que em cada país faria um amigo e que o convidaria a viajar consigo na embarcação, tanto que a certa altura o próprio barco fosse um mundo em ponto pequeno.
Enquanto sonhavam e suspiravam, ouviram o crepitar de fogo; ao principio o som parecia apenas ramos de árvore a partir com a força do vento, mas depois lembraram-se que não havia vento e foram investigar, até que chegaram a uma clareira. Nessa clareira, um velho de rosto carrancudo parecia meditar em frente a uma fogueira. Tudo no homem era singular; vestia uma túnica longa e branca, desfeita nas pontas pelo tempo, estava sentado numa pose muito estranha e a barba devia ser do comprimento das primaveras que já contava. A doninha e a rapariga aproximaram-se, movidas pela curiosidade e pelo desejo: Seria aquele um feiticeiro qualquer? Sim, sou, disse o velho, sem esperar pergunta. E sei o que pretendem. E podes dar-nos isso?, perguntou a doninha, Posso dar-vos o quê?, cuspiu o velho, Ora, respondeu a menina, aquilo que pretendemos. O que é que vocês pretendem?
O homem devia ser maluco, não dizia coisa com coisa. Afinal que raio de feiticeiro era aquele? Já desanimadas, falaram-lhe do iate e do ornamento de cristal, ao que o velho escutou, atento, ao mesmo tempo que meneava a cabeça em sinal de desaprovação. Então, concluiu ele, Eu sei o que vocês pretendem melhor do que vocês mesmas. Tomem. Passou-lhes para as mãos dois bocados de cartão cobertos por uma camada prateada. Uma raspadinha para cada uma. Raspem, informou ele, E se nas raspadinhas aparecer três vezes o desenho desse vosso sonho, então ele será vosso. E desapareceu.
Esperançosas mas ao mesmo tempo desconfiadas, as duas personagens sentaram-se na clareira com as suas raspadinhas. Os cartões estavam delineados de modo a haver uma divisão em três partes, cada uma delas escondendo os desenhos. Cada uma delas raspou dois e, para sua surpresa, em cada raspadinha calhou um par de desenhos correspondentes ao desejo do seu portador: à doninha um par de ornamentos de cristal e à rapariga dois iates. Ena, isto está a correr bem, não está?, perguntou a rapariga, Sim, parece que sim, concordou a doninha. Nenhuma delas parecia assim tão animada. Pareciam recear o que estava por detrás da terceira parte. No fundo da cabeça de cada uma, corriam muitos e muitos pensamentos, escondidos por uma fina camada de cor de prata. Raspamos ao mesmo tempo?, sugeriu o animal, Sim, aceitou a menina.
1, 2, 3 e... surpresa. No cartão da doninha apareceu um iate e no da rapariga um ornamento de cristal. Não havia nada para ninguém. Olharam uma para a outra e perceberam; momentos antes de rasparem a derradeira parte, desejaram no fundo do coração que não lhes calhasse a combinação vencedora. Tinham encontrado tudo aquilo que queriam sem precisarem de iates caros ou ornamentos exuberantes, a única coisa que fizeram foi sonhar e por pernas ao caminho. Os cartões combinados dariam para concretizar os sonhos, e a ideia era essa: juntas, teriam toda a amizade de que necessitavam, e juntas podiam descobrir o mundo, sem medo de solidão ou cheiros desagradáveis.

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