quinta-feira, 29 de abril de 2010

O livro

Durante anos o velho foi velho e ninguém soube o que por aquelas terras andava fazendo, nem ele sabia, ninguém o conhecia, só o via, Mas quem será, perguntavam todos, Um louco qualquer, despachavam uns, Um feiticeiro com poderes, sonhavam outros, e o velho a ninguém explicava porque ninguém lhe perguntava, e se perguntasse não se entenderia porque os adultos destas coisas demasiado grandes não entendem, só às crianças, e foi às crianças que ele um dia explicou, à beira-rio, quando todos os adultos estavam preocupados com preocupações. As crianças não lhe perguntavam quem era, apenas Quantos dragões matou, quantas princesas salvou, que reinos conquistou, que livros de si escreveu, Livros, Livros não, livro, toda e qualquer vida é um livro, um livro especial, Mas especial porquê, tem páginas, Sim e não, tem as memórias que podem ser folheadas, podem tentar ser ignoradas mas nunca são por nós rasgadas, E quando é que o começou a escrever, Escrever, não se escreve, escreve-se sozinho, o lápis é o tempo que só passa e não recua e só pára em momentos únicos, poéticos, diferentes, E então quando é que acaba, Não sabemos, e por isso é que é especial, porque é um livro que escrevemos e lemos mas não sabemos quando vai acabar, mas nem importa, importa que cada linha tenha respiração e sangue e pulso, Mas e quando acabar, Quando acabar, acabou, e recomeça, pelo menos disse-mo um amigo que tive e eu acredito porque ele percebe dessas coisas, Ele também escreve, Sim, mas escreve no chão, Porquê, Porque o pai dele lhe ensinou, porque no chão escreve-se e apaga-se mas só desaparece se nós nos esquecermos onde escrevemos, E ele não se esquece, Nunca, e então o velho levantou-se e partiu, e falou e fala a muita gente do seu livro e do seu amigo, e um dia ele vai passar por nós, e nós temos que ser crianças porque só as crianças é que podem ir à beira-rio.

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