João, quando lhe perguntavam o que gostava de fazer, uma das muitas coisas que lhe vinham à cabeça, era ler. E era verdade, não se considerava um amante das letras, mas gostava. Não só de jornais e revistas temáticas, mas também “livros livros”, sem ilustrações, grandes, de aventuras ou mistério. Sim, gostava de ler. Pelo menos achava que sim, até ao dia em que essa realidade sofreu uma grande viragem, após um episódio bastante singular.
Havia ocorrido, até à hora de almoço, a rotina ordinária na vida de João; escola, basicamente. Levantara-se de manhã, apanhara o autocarro para as aulas, fizera um teste, recebera outro e tivera ainda Educação Física, antes da refeição já referida que, naquele dia, tomava sempre em casa.
Quando se sentou na paragem, procurou o passe que, cuidadosamente, guardava na carteira. Abriu-a e… nada de passe. Alarmado, procurou-o nas malas, a da escola e a do equipamento desportivo, nos bolsos, até no chão nas imediações da paragem. “Impossível”, pensou. “Guardei-o aqui na carteira, tenho a certeza. Bom, não vale a pena voltar agora para trás e procurá-lo. Só pode ter caído no balneário. Amanhã compro bilhete, e agora… bem, agora vou a pé. Caminhada de meia hora, estou cansado, mas faz-se bem”.
O percurso obrigava a que atravessasse um parque que, pela densidade de arvoredo, comprimento e ausência regular de pessoas, se assemelhava bastante a um pequeno bosque. Já não passava por ali fazia muito tempo, apanhava sempre o transporte, nunca lhe acontecera algo como naquele dia, o cuidado com que guardava e estimava as coisas a isso proporcionava. Já se encontrava à sensivelmente dez minutos no interior no parque quando algo o chamou à atenção; na berma no caminho mal alcatroado, junto a um arbusto, estava um envelope, juntamente com um pequeno embrulho de papel castanho. “Que raio estará isto aqui a fazer?” perguntou a si mesmo João, “Não parece que alguém o tenha deixado cair, tem mesmo aspecto de ali ter sido colocado.” Pegou então no envelope e, na ausência de nome de destinatário, investigou o embrulho: Não era muito pesado, podia sentir umas cavidades perpendiculares no que quer que o papel escondesse e, tal como o envelope, não dizia nada. Resolveu então abrir o envelope, já dominado pela curiosidade. “Não deve ser nada de extraordinariamente importante para pensar em entregar à polícia e, de qualquer das formas, parece-me que apenas o interior me pode indicar o destinatário, a existir.” E abriu.
Num papel cuidadosamente dobrado, podia ler-se, numa letra pequena e bem desenhada, a seguinte frase: Vou ensinar-te a ler. “Bem, continuo sem saber para quem será… no entanto, a maneira como está escrito para dirigir-se, vá-se lá saber porque razão, a mim.” Pensou João. “De qualquer modo, eu sei ler, não percebo o que quererá, na verdade, isto dizer. Vou abrir o embrulho, é a minha última e melhor hipótese.” Rasgou então o embrulho e lá dentro encontrou… uma mini-tablete de chocolate, não maior que um cartãozito. O que já era esquisito perdeu ainda mais o sentido com a descoberta, acabando por provocar mesmo algum desinteresse em João. “É uma brincadeira qualquer, alguém que não tem mais que fazer. Vou é comer o chocolate, aquela aula de Física matou-me e vai-me saber mesmo bem.” E de uma vez engoliu o chocolate, mal lhe sentido o sabor, mas ganhando forças para continuar o caminho, pois ainda faltavam mais de dez minutos até sair do parque e quanto mais depressa chegasse, melhor.
Uns metros à frente, depois de um par de curvas, encontrava-se uma bifurcação. João conhecia apenas um caminho, o da direita, que sempre havia tomado quando, no passado, ali andara. Todavia, parecia que hoje iria conhecer o da esquerda; um aviso à entrada do percurso destro impedia os peões de por ali passarem, devido a umas quaisquer obras que estariam a ser executadas. “Devem estar a tapar algum buraco, ou abrir mais o caminho”, pensou João. Eram normais, ocasionalmente, algumas intervenções de manutenção no parque, mas, por acaso, nunca tinha sido deparado com nenhumas. “É preciso ter azar… bom, sei que o da esquerda é mais longo, mas deverá certamente levar-me também a casa.”
Não tinha andado cinco minutos quando, para seu espanto, viu mais um embrulhozinho igual ao anterior, desta vez sem envelope. Mais uma tablete, em tudo igual à anterior. “Isto está a ficar mesmo muito esquisito”, pensou João. “Eu nem sequer devia estar aqui e aparecem-me duas tabletes, dum tamanho e forma que nem nunca sequer vi à venda, uma delas com uma carta dizendo que, inclusivamente, me ia ensinar a ler.” No entanto, não se preocupou verdadeiramente; era talvez uma brincadeira de um amigo. Ainda não vislumbrara o objectivo, mas decidiu entrar no jogo. Comeu o segundo chocolate, agora com muito menos voracidade com que ingerira o primeiro. Demorou-se um pouco mais, afinal já nem tinha tanta fome. Este sabia tal e qual o outro, mas parecia um pouco mais rijo, mas de uma maneira estranha, não sabia explicar. “Bom, avançando. Não sei quanto tempo tenho ainda de caminho ao certo, o melhor é pôr-me a mexer.”
E foi o que fez. Ainda andou dez minutos, até começar a ouvir pneus de carros a raspar o alcatrão, ainda ao longe primeiro, depois mais perto; estava quase a sair do parque. Apressou o passo, mas eis que a viu: terceira tablete, novamente com envelope. “Eu sabia, a história das tabletes ainda não tinha acabado. Deve ser a última, para trazer envelope… vou ler.” Pegou no invólucro mas no rosto deste dizia: Primeiro a tablete de chocolate. “Porque não? Jogo até ao fim. Okay, primeiro a tablete.” Já nem tinha fome, pelo que decidiu saborear bem este terceiro doce. Até lhe pareceu diferente; na verdade, ao deixar o chocolate derreter-se na boca, descobriu que as tais partes mais rijas eram afinal amêndoas, se bem que o sabor em si era muito idêntico. Não precisou de pensar muito para descobrir que as três tabletes haviam sido iguais, a diferença residira no modo como as saboreara. Abriu por fim o envelope, agora, com um texto mais longo e um pequeno “brinde”; o seu passe estava lá dentro. Dizia a carta:
Disse-te que te ia ensinar a ler. Para isso tirei-te o passe dos transportes, inventei obras para que percorresses um caminho mais longo. E ensinei-te a ler. Talvez ainda não tenhas estabelecido a relação, mas na verdade, fi-lo: As três tabletes não foram mais que três cópias do mesmo livro, ou melhor, três modos de leitura de um mesmo livro, texto, poema. Leituras essas feitas por ti. Cansado da tua última aula, devoraste-a mal deixando que te passasse pela boca. Matou-te a fome, leste mas não tiveste um verdadeiro prazer. Com os olhos agrediste letras que foram criadas com o intuito de te acariciar a alma. A segunda tablete já mereceu um outro tratamento, certo? Pareceu-te inclusivamente diferente da primeira, sei que sim. Leste, as palavras abriram as portas do teu coração, mas não chegaram a entrar, não as deixaste. São muito selectas, elas, têm de ser consideradas importantes antes de seduzirem alguém, tens de as respeitar antes de te apaixonares por elas. A terceira tablete… essa leste-a, no verdadeiro sentido da acção. Sentiste os seus pedaços, discerniste diferenças, saboreaste-a, sentiste-a por inteiro. Conheceste-a toda, percebeste possivelmente até que já a conhecias, ou melhor, já ouviras falar dela. As letras, as palavras, a literatura, começou por ser tua conhecida, depois amiga, agora amada.
Já sabes ler João.
Não vale a pena procurares-me, não sou sequer alguém.
E não era.
*.* gostei imenso deste, ainda mais do que o costume x)
ResponderEliminarBeijinhos
os famosos três chocolates de que me falaste.
ResponderEliminarestá excelente :)