sexta-feira, 26 de março de 2010
O choro do mar
quinta-feira, 25 de março de 2010
Perspectivas
A própria foto que outrém tirou
Pois esta é alguém a mostrar o que fui
E o espelho dá-me aquilo que sou.
terça-feira, 23 de março de 2010
Um sentido
Porque é que a maçã sabe a maçã?
Porquê se, para ser franco
Tudo me cheira a manhã?
Sentido é venda e é ilusão
Olho e nariz e boca mente
Cheire-se com orgão coração
Veja-se com a visão da mente.
Porque tudo é belo e é verso
Um quadro surreal amigo
Que não é estranho nem perverso
Anda de mãos dadas comigo.
Bifurcação
Numa, flor pequena de floresta
Noutra, grande pomposa chave mestra
De ouro e jóias que brilhavam.
Para uma escolher decisão faltava
Pois mão livre caso prendia
E de cada opção futuro eu via
Filme que nos olhos me passava.
Se chave guardasse rei eu era
Amarelo ouro quanto sorriso
Felicidade de metal mera.
A flor voava ao vento liberto
Eu alegre corria como doce fera
E o meu coração era livro aberto.
domingo, 21 de março de 2010
Estado líquido
sábado, 20 de março de 2010
Dual
segunda-feira, 15 de março de 2010
Análise
Cruzada
sábado, 13 de março de 2010
Cativeiro
Carne é grade do coração
E a chave da prisão
Que é minha, não está
Na minha mão.
quinta-feira, 11 de março de 2010
Linhas
segunda-feira, 8 de março de 2010
Bola de neve
Cai e cresce
Enquanto desce
Fria egrande e alva
Como aquela madrugada
Como uma mulher só e amada
Que só poeta solitário sabe e salva
E a bola cresce e rebola e só e avança
E só acelera sem parar nem nunca se cansa
Passa arbusto e árvore e tudo o que lhe aparecer
Até que já velha e sábia chega ao fim e acaba por embater embater embater embater embater emb
a
te
r.
Conversas
Tanta palavra em vão deitada
Tanta mão apertada
Tanto "Olá como está"
Tão diverso e oscilante tom
Tanta palavra por aí há.
Diversos são os modos se falar.
Lábios e língua muito uso
Conhecem mas pouco dizem
Pois de mil que mundo tem
O sabor não encanta paladar
E esse falar eu odeio e recuso.
Com as palavras digo
Uso chavões de etiqueta aprendidos
Neles ignoro sentimentos, contidos
Não me saem da boca
Ficam comigo.
O som nada quer com o amor
Nem com choro nem com dor
Nem quer saber dos medos
Falar com lábios não tem a mesma cor
Prefiro tanto falar com os dedos!...
sábado, 6 de março de 2010
Os pequeninos
Ad infinitum
Mas sem ouro e metais brilhantes
Que é de sangue e fome propenso
E sim com imortais diamantes.
Noite e dia
quinta-feira, 4 de março de 2010
Dilúvio
Só me atende a chuva
Sem piedade.
Ninguém mostra abrigo
Ninguém se torna amigo
Ninguém mostra a verdade.
Chove e o horizonte perdeu-se
De azul e azul nado
P'lo cinzento foi condenado
E por muito que o procure
Não há olhar que fure
A escuridão que se abateu.
Nem céu nem chão
Nem ar nem Sol me são
Só me tenho e só sou
Porque a chuva veio e levou
Calor amor e coração
terça-feira, 2 de março de 2010
Os 3 chocolates
João, quando lhe perguntavam o que gostava de fazer, uma das muitas coisas que lhe vinham à cabeça, era ler. E era verdade, não se considerava um amante das letras, mas gostava. Não só de jornais e revistas temáticas, mas também “livros livros”, sem ilustrações, grandes, de aventuras ou mistério. Sim, gostava de ler. Pelo menos achava que sim, até ao dia em que essa realidade sofreu uma grande viragem, após um episódio bastante singular.
Havia ocorrido, até à hora de almoço, a rotina ordinária na vida de João; escola, basicamente. Levantara-se de manhã, apanhara o autocarro para as aulas, fizera um teste, recebera outro e tivera ainda Educação Física, antes da refeição já referida que, naquele dia, tomava sempre em casa.
Quando se sentou na paragem, procurou o passe que, cuidadosamente, guardava na carteira. Abriu-a e… nada de passe. Alarmado, procurou-o nas malas, a da escola e a do equipamento desportivo, nos bolsos, até no chão nas imediações da paragem. “Impossível”, pensou. “Guardei-o aqui na carteira, tenho a certeza. Bom, não vale a pena voltar agora para trás e procurá-lo. Só pode ter caído no balneário. Amanhã compro bilhete, e agora… bem, agora vou a pé. Caminhada de meia hora, estou cansado, mas faz-se bem”.
O percurso obrigava a que atravessasse um parque que, pela densidade de arvoredo, comprimento e ausência regular de pessoas, se assemelhava bastante a um pequeno bosque. Já não passava por ali fazia muito tempo, apanhava sempre o transporte, nunca lhe acontecera algo como naquele dia, o cuidado com que guardava e estimava as coisas a isso proporcionava. Já se encontrava à sensivelmente dez minutos no interior no parque quando algo o chamou à atenção; na berma no caminho mal alcatroado, junto a um arbusto, estava um envelope, juntamente com um pequeno embrulho de papel castanho. “Que raio estará isto aqui a fazer?” perguntou a si mesmo João, “Não parece que alguém o tenha deixado cair, tem mesmo aspecto de ali ter sido colocado.” Pegou então no envelope e, na ausência de nome de destinatário, investigou o embrulho: Não era muito pesado, podia sentir umas cavidades perpendiculares no que quer que o papel escondesse e, tal como o envelope, não dizia nada. Resolveu então abrir o envelope, já dominado pela curiosidade. “Não deve ser nada de extraordinariamente importante para pensar em entregar à polícia e, de qualquer das formas, parece-me que apenas o interior me pode indicar o destinatário, a existir.” E abriu.
Num papel cuidadosamente dobrado, podia ler-se, numa letra pequena e bem desenhada, a seguinte frase: Vou ensinar-te a ler. “Bem, continuo sem saber para quem será… no entanto, a maneira como está escrito para dirigir-se, vá-se lá saber porque razão, a mim.” Pensou João. “De qualquer modo, eu sei ler, não percebo o que quererá, na verdade, isto dizer. Vou abrir o embrulho, é a minha última e melhor hipótese.” Rasgou então o embrulho e lá dentro encontrou… uma mini-tablete de chocolate, não maior que um cartãozito. O que já era esquisito perdeu ainda mais o sentido com a descoberta, acabando por provocar mesmo algum desinteresse em João. “É uma brincadeira qualquer, alguém que não tem mais que fazer. Vou é comer o chocolate, aquela aula de Física matou-me e vai-me saber mesmo bem.” E de uma vez engoliu o chocolate, mal lhe sentido o sabor, mas ganhando forças para continuar o caminho, pois ainda faltavam mais de dez minutos até sair do parque e quanto mais depressa chegasse, melhor.
Uns metros à frente, depois de um par de curvas, encontrava-se uma bifurcação. João conhecia apenas um caminho, o da direita, que sempre havia tomado quando, no passado, ali andara. Todavia, parecia que hoje iria conhecer o da esquerda; um aviso à entrada do percurso destro impedia os peões de por ali passarem, devido a umas quaisquer obras que estariam a ser executadas. “Devem estar a tapar algum buraco, ou abrir mais o caminho”, pensou João. Eram normais, ocasionalmente, algumas intervenções de manutenção no parque, mas, por acaso, nunca tinha sido deparado com nenhumas. “É preciso ter azar… bom, sei que o da esquerda é mais longo, mas deverá certamente levar-me também a casa.”
Não tinha andado cinco minutos quando, para seu espanto, viu mais um embrulhozinho igual ao anterior, desta vez sem envelope. Mais uma tablete, em tudo igual à anterior. “Isto está a ficar mesmo muito esquisito”, pensou João. “Eu nem sequer devia estar aqui e aparecem-me duas tabletes, dum tamanho e forma que nem nunca sequer vi à venda, uma delas com uma carta dizendo que, inclusivamente, me ia ensinar a ler.” No entanto, não se preocupou verdadeiramente; era talvez uma brincadeira de um amigo. Ainda não vislumbrara o objectivo, mas decidiu entrar no jogo. Comeu o segundo chocolate, agora com muito menos voracidade com que ingerira o primeiro. Demorou-se um pouco mais, afinal já nem tinha tanta fome. Este sabia tal e qual o outro, mas parecia um pouco mais rijo, mas de uma maneira estranha, não sabia explicar. “Bom, avançando. Não sei quanto tempo tenho ainda de caminho ao certo, o melhor é pôr-me a mexer.”
E foi o que fez. Ainda andou dez minutos, até começar a ouvir pneus de carros a raspar o alcatrão, ainda ao longe primeiro, depois mais perto; estava quase a sair do parque. Apressou o passo, mas eis que a viu: terceira tablete, novamente com envelope. “Eu sabia, a história das tabletes ainda não tinha acabado. Deve ser a última, para trazer envelope… vou ler.” Pegou no invólucro mas no rosto deste dizia: Primeiro a tablete de chocolate. “Porque não? Jogo até ao fim. Okay, primeiro a tablete.” Já nem tinha fome, pelo que decidiu saborear bem este terceiro doce. Até lhe pareceu diferente; na verdade, ao deixar o chocolate derreter-se na boca, descobriu que as tais partes mais rijas eram afinal amêndoas, se bem que o sabor em si era muito idêntico. Não precisou de pensar muito para descobrir que as três tabletes haviam sido iguais, a diferença residira no modo como as saboreara. Abriu por fim o envelope, agora, com um texto mais longo e um pequeno “brinde”; o seu passe estava lá dentro. Dizia a carta:
Disse-te que te ia ensinar a ler. Para isso tirei-te o passe dos transportes, inventei obras para que percorresses um caminho mais longo. E ensinei-te a ler. Talvez ainda não tenhas estabelecido a relação, mas na verdade, fi-lo: As três tabletes não foram mais que três cópias do mesmo livro, ou melhor, três modos de leitura de um mesmo livro, texto, poema. Leituras essas feitas por ti. Cansado da tua última aula, devoraste-a mal deixando que te passasse pela boca. Matou-te a fome, leste mas não tiveste um verdadeiro prazer. Com os olhos agrediste letras que foram criadas com o intuito de te acariciar a alma. A segunda tablete já mereceu um outro tratamento, certo? Pareceu-te inclusivamente diferente da primeira, sei que sim. Leste, as palavras abriram as portas do teu coração, mas não chegaram a entrar, não as deixaste. São muito selectas, elas, têm de ser consideradas importantes antes de seduzirem alguém, tens de as respeitar antes de te apaixonares por elas. A terceira tablete… essa leste-a, no verdadeiro sentido da acção. Sentiste os seus pedaços, discerniste diferenças, saboreaste-a, sentiste-a por inteiro. Conheceste-a toda, percebeste possivelmente até que já a conhecias, ou melhor, já ouviras falar dela. As letras, as palavras, a literatura, começou por ser tua conhecida, depois amiga, agora amada.
Já sabes ler João.
Não vale a pena procurares-me, não sou sequer alguém.
E não era.
A caixinha
O dia era de Sol, de uma luz quente que inundava quem tivesse tempo para a sentir, um convite irresistível para que as pessoas se sentassem e a mirassem, como se fora tão objectiva como a irmã chuva que, todavia, serve apenas de cenário a momentos mais poéticos. E bem podia, no seu sentido mais cinzento, servir de pano de fundo ao diálogo entre as duas personagens do teatro-vida que se desenrolava num qualquer lugar deste minúsculo palco chamado Mundo.
Era um jovem casal que se despedia; juntos havia anos, tinham encontrado um no outro a resposta ao fim último da existência. Amavam-se como o mar ama a praia, mas quis o destino que não fosse esta uma ligação eterna como a dos elementos. Ela teria que viajar. No último instante de adeus, a jovem deu ao rapaz uma pequena caixa de fósforos; como a mesma explicou, no interior da caixinha estariam três beijos dela, que ele só deveria usar quando mais precisasse. E foi tudo o que deixou.
Ele ficou, passaram dias como se foram anos e, sem nada que o agarrasse a si, quis fazer o que a vida menos quer. A um passo do vazio, resolveu abrir a caixa e beijá-la; lá dentro, estava um pedaço de algodão e, quando os seus lábios tocaram no tecido, o cheiro e cor e vida da amada entraram-lhe pela alma, chacinaram o cinzento que havia em si e agarraram-no à vida.
Cheio com a vida do pedaço de algodão, o jovem que quisera matar-se desejou vida como se fora água no deserto e, continuando consciente de que não poderia procurar o seu amor, percorreu o mundo e conheceu lugares, sabores, gentes, provou a aventura. Um dia, já mais velho, homem, no cimo de um rochedo com uma paisagem que bem podia ilustrar o Paraíso, sentiu-se pleno, completo, no que respeitava a si. Só desejou que a rapariga ali estivesse e, assim, deu um segundo beijo na caixa.
O tempo passava e o homem envelheceu. As viagens eram agora a bordo da sua imaginação, sempre sozinho, porque nunca encontrou ninguém que pudesse preencher o buraco que ficara naquele dia solarengo. A despedida que se aproximava agora era outra, bem menos dolorosa, mais apaixonante. Porque para o velho jovem a morte, que já anteriormente cumprimentara, não assustava. Na cama, perto de conhecer a face oculta da vida, beijou a caixa de fósforos pela última vez. Esgotou o terceiro beijo e chegou a uma conclusão: a amada sempre o tinha acompanhado. Feliz como nunca fora, fechou os olhos, com um sorriso na cara, alegre como um desenho a guache de uma criança.