Era julgado na barra do tribunal um homem velho, gasto pelo trabalho de uma vida que nunca lhe sorrira, mas dos lábios poucas vezes lhe saiu o sorriso. Era inocente, e o caso para aqui pouco interessa, tenho que me debruçar sobre aquilo que a justiça ignorou. Dizem que é cega, talvez se tivesse olhos pudesse ver que aquele homem não tinha maldade na sua aura, mas enfim, não se julgam "auras".
O homem que o acusava era muito poderoso, e tinha uma vida rica pela frente à custa de muitas pobres que espezinhara e deixara para trás. À sua maneira, exercera a sua influência sobre o juiz que lá deixara de ser invisual para conseguir ver o caminho para o seu próprio bolso. Condenado, grande surpresa. O velho estava desolado, apesar de já esperar aquele desfecho. Não chorava, na verdade não expressava nenhuma emoção. Ao longo da sua vida aprendera a resignar-se perante certas situações, entregando o seu futuro nas mãos de Deus. Era crente, mas não daqueles que cobram de Deus aquilo que lhes corre mal e o ignora quando a vida é só alegrias. Para aquele homem tudo tinha razão de ser, e todas as situações que parecessem totalmente orfãs de sentido (ou de justiça, como era o caso) eram por ele aceites.
Era uma questão de tempo. Não, ele não acreditava que o karma acabaria por cobrar contas àqueles que haviam procedido mal, isso implicaria guardar rancor e desejar mal, não; olhava mais além. Tudo acabaria por passar. A vida é passageira e muito curta, e mais à frente tem que haver felicidade guardada, um tesouro no céu. Secretamente, tinha até as suas próprias projecções do Paraíso, e elas se entregava quando tudo parecia ruir. Sonhava em chegar ao céu e poder voltar a ser criança, inconsciente e sem problemas e feliz e ter perfeita consciência disso. Uma inconsciência consciente, era o sonho dele.
Enquanto tudo isto lhe aflorava a mente, sorriu, no meio do tribunal. Ninguém reparou. Encaminhou-se para a saída e cá fora cruzou-se com o acusador. Por um momento, os olhares cruzaram-se; o jovem sentiu repulsa, talvez mais por si mesmo que pelo velho. E afastou-se. O homem, enquanto o via caminhar, sentia pena dele, uma sincera piedade que nada tinha de cínico. Nunca sentiria a pura felicidade, uma felicidade intemporal. E dificilmente amaria. Em casa, o velho tinha à espera a sua esposa. Pensou nos longos anos que passara com ela e no quanto a amava. E aos filhos, e anos netos. Valiam todas as provações por que passara, e viesse mais uma vida inteira de dificuldades se a recompensa fosse aquele. No passado, pensou, e no futuro, existem refúgios para um hoje desesperante.
Enquanto estes pensamentos lhe ocupavam a mente, reparou numa carteira no chão; caíra do bolso do sujeito que o acusara. Correu para a apanhar. Não a abriu, mas adivinhou o dinheiro que lá deveria conter, provavelmente suficiente para lhe suportar um mês de mercearia, talvez dois agora que as dificuldades iriam aumentar de sobremaneira graças ao que teria que lhe pagar, ao jovem e ao tribunal. Mas isso nem chegou a ser hipótese. Acelerou o passo e apanhou o homem à entrada para o elevador. Ele ainda se assustou, pensou que o velho o fosse tentar agredir, mas ao ver a sua carteira acalmou-se. Recebeu-a das mãos do velho, que lhe sorriu e aconselhou cuidado, como se estivera a avisar o neto pequeno dos perigos das correrias. Não o disse, mas era capaz do o amar, àquele homem que tanto mal lhe fizera.
Porque amar quem nos ama pode ter muito que se lhe diga mas é fácil porque faz sentido, agora amar o inimigo é ser-se algo mais, e acreditar em algo mais. E desejar algo mais.
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