sábado, 19 de fevereiro de 2011

Injustiça

Guimarães a pano de fundo, castelo no horizonte e um aroma no ar a um D. Afonso Henriques que já foi guerreiro mas anda agora adormecido, ou talvez sejamos nós que ainda não tenhamos percebido que quem está acordado é que deve sonhar. A tarde era de um Sol imenso, estranha essa condição humana de procurar a sombra quando aquece e desejar o calor em dias de chuva.
Na esplanada procurava-se então essa frescura que a Natureza não dava, entre chapéus-de-sol e bebidas e gelados. Numa das mesas estavam dois senhores muito bem apresentados, de fato. A indumentária pode parecer inapropriada para o dia que se descreve e nem eu de facto entendo muito bem, mas eu não trabalho numa empresa nem nada disso, mas os dois homens trabalhavam e mandava a sua profissão que se vestissem como certos seres do gelo mesmo em dias de calor intenso. Falavam um com o outro sobre números e contas e dinheiro, dinheiro que iam gastando num ou outro refrigerante para arrefecer por dentro, mas claro, o problema era o terno de fora e de nada servia.
Na praça onde se situava a esplanada deambulava um poeta, um pobre miserável que nem tinha dinheiro para mandar cantar um cego, e então cantava ele. Mas cantava à maneira de Camões, escrevendo.Enquanto andava sem rumo propunha uma oferta a quem achasse digno de tal negócio, que era a seguinte: o segundo outorgante (ele não conhecia esta palavra, mas se lha dessem trabalha-la-ia com o mesmo amor que dedicava às outras) escolhia uma expressão qualquer, ou uma palavra, e a partir dela o poeta criava o que de melhor os poetas criam, poesia. Ou terá sido a poesia a criar os poetas? Adiante. Conforme a pessoa abordada gostasse ou não do poema nomearia um preço e compraria o texto por essa quantia. Claro que a poesia sempre é subvalorizada e o dinheiro que o homem lucrava mal dava para comprar mais papéis e lápis, quanto mais para comer.
Ao longe o nosso amigo poeta viu os dois homens de fato na esplanada. Jeito como tinha para o negócio, percebeu que dali podia arrancar algum dinheiro, ainda que pouco amor por poesia. Tentaria a sua sorte. Aproximou-se e no jeito enigmático que só um poeta de rua pode e sabe ter, expôs as condições. Um dos senhores decidiu que o melhor seria ignorá-lo, o pobre coitado deve querer dinheiro para drogas ou bebida, ainda que não tivesse aspecto disso, como se interessasse. O outro, porém, pôs-se a pensar, com pena do desgraçado. Havia pessoas que realmente pouco tinham, a vida não lhes havia sorrido. Ele por exemplo tinha tudo, aquele homem não tinha nada. Seria justo? Injustiça, disse, escreva sobre a injustiça. Afinal, qual seria a opinião de um injustiçado sobre a injustiça? O seu amigo ficou surpreendido, mas o poeta sorriu e pediu um lugar na mesa onde estavam, que lhe foi concedido. E entregou-se ao papel, com a cara extremamente próxima, de testa franzida e língua massacrada pelos dentes. Por uns minutos escrevinhou e riscou até que, com um sorriso, pousou o lápis. Pegou no trabalho final, pigarreou e, levantado, declamou o próprio poema:

Deus,
O Sol nasce e a todos aquece
Pois para todos é o seu nascimento.
Mas, piedade, olhe-nos um momento
Será que esta gente merece
Tamanha tortura, tormento?

A que coisas a vida obriga
Pele coberta, e a ferver
Preferia mil vezes ter que morrer
A esta punição que tão grave castiga
Ter a perfeição e por ela sofrer.

Injustiça, quem o nega?
O Sol não queima, só conquista
E que brilhe sem ofuscar a vista!
E se é verdade que a justiça é cega
Então que seja a injustiça vista.

2 comentários:

  1. Mau Mau Mau!!!
    Vais de mal a pior!! Como é que foste capaz de utilizar Guimarães para um poema chamado "Injustiça"...
    E fica já sabendo, na minha cidade numa praça cheia de esplanadas costuma estar um senhor ou com um copo de vinho ou um lápis e um papel!! Coloca a música aos altos berros, e se tiver o copo está numa tentativa de cantar, quando tem o papel cita um poema de sua autoria,ou por vezes cita Camões!!!
    E toda a gente o trata o bem, no final recebe sempre aplausos!!!
    Obrigada á mesma!! :-P

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Comentários