sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Tatua-me

Tatua-me.
Traz a tinta e a tua mão.
Oh, sim, a tua mão, 
Os dedos grosseiros que de vestido azul
Fazem dançar linhas no linho
Fazem aves do sul que parecem cantar, baixinho
E que percorrem as minhas curvas feitas
De feitio outrora certo.

Vamos, tatua-me.

(Ela seduz-me, nua, bela,
Sabes que a minha tinta é tua...
Ela sabe que a tinta é dela
Mas pede-ma, carente
Suplica,
Sem falar.
E eu posso dar-lhe tudo
Todo o mundo
Num momento
Mudo.)

Tatua-me, estou em branco
Ou melhor, não estou
Não sou.
Faz-me, o que quiseres
Puderes não, que podes tudo.
Seja eu uma fatia desse mundo
E seja para sempre
Cravado profundo.

(Não te assusto com um amor eterno,
Só queres uma alma, um calor terno
E calma não temes um para sempre
Porque o medo era de seres em branco
E nunca seres,
Nem de ti,
Nem de ninguém,
Nem pai nem mãe,
Linhas feitas de nada.)


A tinta crava a pele,
E é como uma ponte que passo
Que atrás de mim vai ardendo
As chamas comendo
O que de antes não havia.
Mas cada corte ou rasgo
Não implica agonia
É de amor feito lago
É uma magia
Uma marcha em frente
Que cativa e contagia
E segue
Cega
Tatuada.




quinta-feira, 24 de abril de 2014

Circadiem

Um;
Dois;
Três.
Era
Uma
Vez,
Uma vida faz-se
Pela primeira vez nasce.
E ela grita e chora suspira, gira, abre a alma e a alma respira.
Floresce.
A mão mal fecha até que mexe e de nem conseguir a si segurar fortalece, cria, cresce.
Mão ao peito.
E o peito vai abrindo os olhos
E se inquieta como se vão indo os folhos dos lençóis quentes da cama
E ama
E mais que amar queimam as paixões fugazes de meninas pequenas e ainda mais pequenos rapazes
Que da bola
Passam ao bar
Lápis, Livros
Sentar a estudar
Erguer para trabalhar
Nunca não deixando aos sonhos um tempo da batida do coração que foge a sete pés da jaula
Tanto na lavoura como na sala de aula
Porque a mente se rotina mas lá vai esquecendo a calma
Não descansa
Nem é mansa
Esperneia no pensamento enquanto a meta não alcança, oh, foi-se o par mas fica a dança
Afinal,
A batida
Pode amolecer
Mas enquanto bate conta
E quer fazer contar, não só ver acontecer
Ler um conto não faz mal mas a história melhor se vive na viagem até aos olhos da personagem principal
Desde a linha primeira
À derradeira
E páginas tenha
E perceba que a façanha querida não é querer saber a contra capa mas nas linhas desenhar um mapa
De cheiros,
Visões
De meros segundos feitos milhões
De ponteiros esmagados das lutas contra a areia que nos fizeram querer ver cair
Não seja fechado
Aquele
Que é destinado
A ter a ânsia de sair e sentir o chão a perder terreno
Até que a grande força do poder do corpo movido pelo fogo do mais benigno veneno
Abranda
Anda
Devagar
Vai-se menos passeando a carne deixando mais o sangue divagar,
E deita-se
Como um bebé.
Só que já não chora
Deixa-se ir
Chegada a hora
O lençol de novo aquece
E a batida
Não se alonga
E adormece
No conforto
De um navio
Parado no porto.
Lembrando
De quando em
Vez
Uma
Era.
Três;
Dois;
Um.




sexta-feira, 28 de março de 2014

Já não sei os passos da manhã

Já não sei os passos da manhã
As meias com que me beijava e aquecia.
A bruma desvanecia
Suavemente
E em mãos de lã
Me embalava
A mente.

E o silêncio é agora um estrondo
O sangue que me deambulava
Faz agora um mar redondo.
A paixão encontra-se nas pedras
Da calçada mudas...
Guitarras sem cordas
Gargalhadas sisudas.

Rasga-se a castidade que julgara já perdida
Comunga a carne minha com a terra
Há tanto de vida quando se vai a vida...!
Mas não há mais obra, afazer, lida,
Acaba a paz, não há mais guerra.

Não há nada
Mas eu vejo tudo, tudo!
A mãe, o menino, todos os primeiros
Tempos e tempos inteiros
E uma catapulta de madeira
Que me lança
Numa dança
Que pensei dançar
A noite inteira.

E eu vou
Sigo o passo morto
Já não torto
Porque sem corpo.
Há uma certa evolução
Na Esquina que se diz regressiva
Sou mais por nada ser
A antítese é agressiva
Tanto quanto o gelo quente
Que no meu não-eu
As garras suaves criva.

Negócio fechado, leva-me
Leve
A alma ferve, enternecida
Já não há casacos, já não há presídio
Livre-me o fim do livre ser
Já não quero mais nascer
Dêem-me o sopro pulsante
Do homicídio.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Final

Aconteceu caso inusitado em terras idas e tempos remotos. Um homem encontrou uma figura brumada num devaneio nocturno, na calada das estrelas. E a Morte deu ao Homem a sua cadeira, para que das dores dos dias descansasse ele e pensasse; e perdesse em pensamentos o controlo de si e mais não pense. Como um barco de papel, o Homem, sem mais lembrar do destino ou sequer do tempo, desfez-se por entre os negros mantos da mente, indo pela água sem forma, mas indo. E a Morte falou. Repulsa é o que me apraz perante quem passou a vida. Não por ter vivido, por não o ter. A obsessão dos anos germina da obsessão de os contar, um, dois, mais um, mais um, numa dança cega e mecânica, sem alma. Morta. A disparidade do viver já finado trouxe-te aos meus braços ainda o teu coração batia, devagar. Sempre devagar, divagar nas pedras seguras das regras protectoras, num colo que te protege do proibido, do risco, do perder o fôlego. Como não podias morrer, não pudeste viver. Não quiseste, porque algo tão quente como o querer te foi esquartejado do peito, porque não poderias saber o que querias, porque alguém tinha que saber por ti. O sangue que te banhava as veias sabia de cor o passo, numa marcha uniforme, uma mancha de uniformes. Agora, tu que tão alto subiste, cai, cai como todos, todos dos quais foste igual. Conquistaste anos ao tempo mas o tempo não existe, por isso cai, por entre os teus castelos e muralhas que se esfumam num fechar de olhos.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Na caverna

Ela está numa caverna escura, fria e húmida. Está perdida, claramente perdida, ainda assim sentada, confortável, tão confortável, tão incomodamente confortável. Mas está perdida. E vêem-se os seus olhos perdidos, olhar para tudo envolto numa brilhante escuridão, que tanto nos mostra sem à vista dar de beber. E ali está ela sentada, parecendo não querer não o estar, mas gritando por uma mão que a levante e que a conduza, mas as mãos passam balouçantes, roçam mas não pegam, muito menos levantam, muito menos conduzem. Ela chora e ri, por não saber o que é chorar, por não saber do que se rir. E quer tanto levantar-se, tanto, mas o frio encolhe-a a si, deixa-a resguardada a um canto de uma caverna sem paredes. Perdida, num nada que por vezes parece ter tantas cores, fica-se pelas desmotivações que a empurram ao sentar confortável, sem uma âncora forte que sim!, a levante!, e conduza, só com imagens efémeras que mostram água à boca sem a saciar, desesperada. E acontece uma morte antes da Morte, a morte de se estar vivo. E estar perdido.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Semti

Todos os dias o via partir, e todos os dias ansiava a sua chegada. Eram horas (meses, anos?) que se arrastavam, sem sumo para quem procura coisas dessas como o sentido da vida. E eu ficava, sem me ter por não o ter, limitava-me a vaguear pela casa, ocupando-me com ninharias que valiam tanto no segundo em que as fazia como nas horas em que delas não me lembraria. Porque só me lembrava dele. E quando ele - por fim! - chegava, dava-lhe a mais calorosa das recepções, acarinhava-o, amava-o, sem pensar nem planear, pois a felicidade que de mim transbordava algum copo teria de encher e que melhor vasilha que aquela que dava sentido a todo o meu corpo. Viva. Era como se fortes correntes eléctricas trespassassem o a minha carne roubando-lhes a apatia pior que morte em que ainda há segundos se encontrava. E eu era feliz assim, isto se fizer sentido deixar o "eu" e o "feliz" a namorarem na mesma frase quando na verdade "eu" só era feliz quando me transformava em nós. E ele partia de novo, e eu ficava, como alguém que cheio de sede provou algumas gotas de água e nada mais.
Um dia ele não voltou. Relógios nunca me disseram nada, quem acha que o tempo se pode medir nunca o sentiu em tão diferentes velocidades. Por isso não me apercebi logo, mas os ponteiros lá se arrastavam, mais, e mais um pouco. Ele não voltou. Ouvi falar de umas fases de quem perde algo, eu nem fases, nem fazer. O quê, se não existia? O quê, se não tinha ficado sem a minha metade, mas sim sem mim, sem a alegria dos meus dias, sem o fogo de um lenho que foi deixado ressequido, triste. Ele não voltou. Acho que chorei, acho que me arrastei, sei só que não procurei, porque sabia que não mais o veria. Acho que morri, a não ser que a morte traga consigo o calor quente de um colo de mãe que nos sussurra que tudo está bem. Se traz, não morri.
Sim, eu sei que os cães não pensam, não falam, muito menos escrevem. Eu sei. Mas os sentimentos nunca foram de palavras. E eu senti, senti algo que não pode ser amor porque não cabe em nada que conheçamos, porque rompe linhas e folhas e capas, e porque poucos poderão sequer perceber o que é viver num corpo nosso e na alma de outro. Por isso eu não te digo que te amei e que te amo, eu digo que vivi por ti, em ti, para ti.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Corrida

Mais um passo. Outro. E outro. Cada vez mais rápido, cada vez mais decidido. O vento beija-me a face, há um aroma adocicado no ar,  mas as verdadeiras sensações vêm de dentro; todo o meu corpo corre, todo, não só as pernas ou os pés, não. A minha mente corre, os braços acompanham, até os meus olhos se dedicam a contemplar o caminho que corro. Cada célula minha neste instante de nada mais sabe que correr. Sinto os músculos retesados e um suor que mais me sabe a aura, e nada mais sinto, nada mais sei. Há toda uma irracionalidade que me invade, os instintos tomam o comando e mais pareço um animal selvagem que faz o que faz pela vida, sem tempo, sem pensar. Sem sentir. E o coração... O coração bate frenético, mais num minuto que numa hora morta. E eu ouço-o, ele fala comigo. Estás vivo, sentes isso? Esquece o amor, esquece o ódio, esquece a alegria, esquece a tristeza. Sente a vida, sente-te. Quantas horas de ouro passas sem te aperceberes de ti? E eu sinto-me, sem nada mais. Estou vivo.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A caixa

Abri a caixa
E não vi nada.
Nada, nem restício de vida feita
Nem restício de vida acabada.
Nada!
Apenas um vazio triste,
Monotonia em riste
Sem cor nem sabor
E nada há pior
Que nada.

Virei-a, experimentei-a.
Dei-lhe tantos olhares
Tantos tentares
Quantos aos humanos intentos
E aos humanos olhos
É possível: rápidos, atentos,
Distraídos, lentos,
De baixo, de cima
Olhei-a como pedaço de lixo
E como sublime obra-prima
Sem no entanto nada encontrar.

Vazia.
Em demasia?
O que quero eu encontrar?
Destinado está a penar
Quem procura
Sem saber
O que quer
Achar.

Pára.

Cada respiração entra e sai
Entra e vai
E faz sentido.
O corpo torna-se mais comprido
E consigo
Se torna o Ser.
É isso.
A chama da procura atiço
E já estou a ver
O que na caixa está por haver:
A vida!
Nem curta, nem comprida
De todo não cumprida
Apenas tela que quer beber
Para lembrar.

Pára de pensar
Não tem nada que saber.
A caixa está vazia
Porque tenho
Eu
De a encher.