quinta-feira, 20 de março de 2014

Final

Aconteceu caso inusitado em terras idas e tempos remotos. Um homem encontrou uma figura brumada num devaneio nocturno, na calada das estrelas. E a Morte deu ao Homem a sua cadeira, para que das dores dos dias descansasse ele e pensasse; e perdesse em pensamentos o controlo de si e mais não pense. Como um barco de papel, o Homem, sem mais lembrar do destino ou sequer do tempo, desfez-se por entre os negros mantos da mente, indo pela água sem forma, mas indo. E a Morte falou. Repulsa é o que me apraz perante quem passou a vida. Não por ter vivido, por não o ter. A obsessão dos anos germina da obsessão de os contar, um, dois, mais um, mais um, numa dança cega e mecânica, sem alma. Morta. A disparidade do viver já finado trouxe-te aos meus braços ainda o teu coração batia, devagar. Sempre devagar, divagar nas pedras seguras das regras protectoras, num colo que te protege do proibido, do risco, do perder o fôlego. Como não podias morrer, não pudeste viver. Não quiseste, porque algo tão quente como o querer te foi esquartejado do peito, porque não poderias saber o que querias, porque alguém tinha que saber por ti. O sangue que te banhava as veias sabia de cor o passo, numa marcha uniforme, uma mancha de uniformes. Agora, tu que tão alto subiste, cai, cai como todos, todos dos quais foste igual. Conquistaste anos ao tempo mas o tempo não existe, por isso cai, por entre os teus castelos e muralhas que se esfumam num fechar de olhos.

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