Dormi, e quando acordei tinham passado dois dias. 48 horas de sono, sono, essa pequena morte que a vida precisa... para viver. Se não existissem relógios, ter-me-ia levantado como se nada fosse, nunca adivinharia a pequena longa hibernação por que passara. Mas tudo está contado, e então sei que dormi dois dias. Até aqui, nada de fantástico, apenas de triste talvez, porque enquanto os meus olhos estiveram fechados a vida continuou ao seu ritmo e eu perdi partes do filme que bem vivido é uma curta-metragem. Com tanto descanso, passaram-se as horas acordado e o sono não chegou. Uma, duas, dez, vinte e quatro, quarenta e oito. Por fim, caí de novo na cama, depois de um longo dia. E de novo sonhei por dois dias. Não sei o que se passava, mas a minha nova rotina estava instalada, incompatível com a vida que os outros vivem. Os dias do calendário deixaram de fazer sentido, o relógio era um instrumento tosco, os meses eram seis e num ano meu os outros viviam dois. Não cheguei a perceber se vivia mais ou menos, sei que vivia diferente. Num mundo que corre acelerado, uma noite minha chegava para na manhã descobrir novas notícias que já eram velhas e descobertas já cravadas nos anais da história. Depois, conheci-a. Passei um dia com ela, um dia dela, note-se. E ela encheu-me. Encheu-me como o ar enche um balão, dá-lhe forma, sentido, vida. Um balão vazio acha-se tão balão quanto os outros, mas depois de cheio e atado nada mais fará senão rebentar, para sempre. E como o balão sobe, eu subi contigo. E vi tudo, num dia; do alto vê-se mais, o horizonte alarga-se, deixamos de perceber onde está o céu e é tudo tão pequeno que nos cabe na palma da mão. Somos reis de um reino sem gente, não é necessário povo para aclamar uma coroa tão natural, e que tão bem encaixa. Todos os verbos se conjugavam no plural, na primeira pessoa. Menos o verbo dormir. Chegou a hora de ela descansar e adormeceu. Pediu-me que dormisse a seu lado e eu disse que sim, sem lhe contar na minha condição peculiar, o meu duplo sono e o meu duplo dia. Toda a noite dela contemplei-lhe rosto sonhador, a sua cara de anjo. Onde estava, ninguém lhe podia fazer mal porque o mal simplesmente não existia. Era tão bonita, tão divinal, e ainda assim estava ali comigo, nos meus braços. Minha. Aos poucos aproximou-se a sua manhã... e a minha noite. Adormeci antes que acordasse. Sonhei com ela a noite toda, nada que me lembre, nada para além da sua presença. Como se o sonho fosse um espaço aberto ocupado por coisas aleatórias e naquele momento nada mais tinha vaga senão o seu olhar, os seus lábios, os seus cabelos. Quando acordei, ela não estava lá. Por certo adormecera noutro lado, no mundo normal onde o dia e a noite têm vinte e quatro horas e onde eu não mais pertencia. Procurei-a, claro, mas a minha jornada dava passos mais largos que a dela, e perdia-a. O meu balão, que subira tão alto, rebentara. Para sempre.
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