segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Vive

Não sejas ignorante.
Porque é que vives sem saber?
Se nada sabes é porque nada queres
Bebe tudo quanto puderes
Afogar só quando morrer.

Almeja mais do o que vês
O mundo vai além do que é normal
Acelera, não traves, faz a curva
E se tiveres a visão turva
Pede uns óculos pró Natal.

Mentem-te com cada dente
Quando maravilhas numeram sete
Num globo azul vibrante
A beleza é um disco gigante
E só conheces uma disquete...


E se te tentarem vestir
Um colete à prova de vida
Vive, foge, mata a cobra
Tens em ti força de sobra
Não a deixes num canto esquecida.

Não és só uma gaveta de um móvel
Nem um tijolo de um casarão
És um todo, nasce, à carga!
Lembra-te que a batata só é amarga
Porque floresce debaixo do chão.

Deixem-se as cadeiras e os quentes
Cimento só é triste sina
O frasco do viver é apertado
Mas se vês o caso mal-parado
Porque não inventas vaselina?







domingo, 24 de fevereiro de 2013

O Barracão

As mudanças estavam já a acabar, finalmente. Mesmo depois da compra da vivenda, processo que só por si demorara imenso, só agora é que David começava a sentir aquela casa como sua. Ainda não era um lar, os caixotes eram pilhas indefinidas, não havia calor, cor, o ar não tinha qualquer peso. Mas estava tudo ali, pronto a ser amado. Andou pela casa; a sua calculadora mental adicionava móveis a espaços, tapetes a chãos, candeeiros a tectos. Será que cabia, será que não? Como um pintor, recheava as paredes mortas de vida, e a volúpia sentida não era inferior à que os conceituados críticos sentem ao olhar uma tela que também na sua mente vai além dos traços desenhados para assumir uma sensação transcendente. E ia explorando; não que não tivesse observado bem a vivenda antes de a comprar, não, mas agora que lhe ganhava amor é que os olhos viam mais do que apenas olhar. Não é sempre assim? E cada vez lhe parecia mais bela, mais formidável, mais maravilhosa. Pela janela da sala viu o barracão que ficava na parte traseira da casa. Na altura da primeira visita o homem da imobiliária não tinha a chave do barracão, tinha-a perdido; sorriu ao lembrar-se do quão cretino e desleixado achara o homem, apesar de toda a sua simpatia, o que de resto o fez hesitar na escolha da casa. Uma relação que se fizera difícil, mas normalmente são estes começos que têm fins mais demorados, talvez inexistentes. De qualquer modo, o seu plano era demoli-lo para fazer uma piscina para o verão ainda longíquo, tanto que ainda nem se preocupara em pesquisá-lo, tinha-o mesmo esquecido. Com a curiosidade aguçada, resolveu finalmente ir ver o seu interior. Não esperava encontrar nada, toda a casa havia sido esvaziada e o barracão aparentava não ter tido muita atenção do anterior dono, que David não conhecera. Foi até lá, arrombou a porta e entrou. Um terrível cheiro a mofo obrigou-o a tossir intensamente, e a sair. Uma terrível constipação oferecida pelo inverno rigoroso dificultou-lhe ainda mais a respiração, e teve que sair para apanhar ar, ar esse que resolveu dividir com o barracão deixando a porta aberta uns minutos, aproveitando para ir buscar uma lanterna pois o pequeno compartimento não tinha qualquer janela e não lhe parecia que fosse electrificado. Quando se recompôs, tornou a entrar de lanterna em riste e... não estava vazio. No meio do barracão havia uma mesa de madeira antiga com uma máquina de escrever e um candeeiro a azeite, extremamente velho e gorduroso. Havia também uma cadeira, onde David se sentou, ainda espantado pela descoberta que fizera. O candeeiro, apesar de mal-tratado, parecia ainda funcional, pelo que o tentou acender com o isqueiro. Funcionou. A chama, inicialmente tímida, foi crescendo, e foi então que David os viu: papéis, dezenas e dezenas de papéis escritos forravam as paredes do barracão, alguns pendurados por uma ponta, outros já caídos. Que seria tudo aquilo? Olhando de novo para a máquina, calculou que tivesse sido dela que todas aquelas folhas haviam saído, e pela primeira vez reparou num outro papel também escrito que estava em cima da mesa, preso pela máquina. Pegou nele. Era um poema pequeno. Quando o acabou de ler, teve apenas uma certeza; o barracão não poderia ser demolido.

O Barracão

Olhos únicos da arte minha
Tomaste-me no peito
E foste a minha casa.
Aqueceste-me sem teres brasa
Eterna alma eterno leito
Dos dedos de uma mão que definha.

Restos de mim guardarás, de pé
Resistente ao tempo homicida
E caia um dia o teu tecto,
Não cairá nunca o afecto
De uma existência não comprida
Mas forte como a maré.

Se uma outra vista te ler
Ó barracão, que me foste lendo
Sabe que não será traição nem meu intento
E por mais que esse saiba o tormento
Não saberá o que de graça eu te vendo.

Porque um poeta a um só ama
Sem emoção noutro lugar conhecer
E foste tu a minha amada
O meu companheiro de caçada
E para sempre havemos de ser
Troçando da morte

                                         Que me chama.

                                                     M. B.
 
 
 

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Chuvas de Fevereiro

Olho pela janela a chuva que cai, impiedosa. Junto dos candeeiros assume um brilho especial, as gotas são donzelas numa pista de uma dança de ritmo monótono. Belo. Único. O seu som ao beijar o que quer que seja o seu fatídico amado embala-me, e entro em transe. Não me sinto mal nem bem, apenas apaixonado por aquilo que não é de ninguém. E ela cai, cai, cai. Quando quer, como quer. Indiferente a tudo, destrói, dá vida, espanca, namora. Vem o vento e ela vai, vinda das nuvens do véu azul, certa da origem e vagabunda de destino. Quero amá-la e ser como ela, coisas que não têm que ser diferentes uma da outra. Ah, ela é uma música silenciosa e um estrondo ensurdecedor, é meiga, arrebatadora, incómoda, confortável. Fazem relógios à prova de água, mas desde sempre a água foi à prova de tempo. Quero saber quando a posso beijar, quero saber onde ela anda, contar-lhe o que sinto, abraçá-la, tê-la, mas quem sou eu? Perante tamanha beleza sinto-me menos do que sou, baixo-me a uma realidade talvez menos mentirosa. Maldita, faz pouco de mim, bate-me na janela, despe-se perante mim ciente de que mais não posso que olhá-la, desejá-la. Gotas tão pequenas e uma chama tão grande. Leva-me contigo, deixa que sinta o que é existir sem ser, deixa-me encantar olhos e roubar corações, deixa-me ir, sem ondes e quandos. Não te vás embora, já foi, mas eu não quero, eu avisei-te, porquê?, sem porquês, só porques sim. Tanto mar e tanto rio, e nunca terei de ti sequer uma poça.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Não pára

Já não é a tinta
Nem o piano mudo
Apenas a carne que dança
Ao som da mente
Ao som de tudo.

Não há ponto de ligação
Ou pombo correio
Não;
Apenas a vontade,
Algum talento
E coração.

Morreu o esforço,
O dever,
O plástico.
O ofício de quem imortaliza
É elástico
E não pára de encolher.

Ah, o rio corre
E de encher não pára
O mar
E quando se pensa que o copo está cheio
Percebemos, que devaneio!,
Que foi feito para transbordar.

Inunda de ti o mundo teu
E o eco acaba por soar
Canta e embala
Canta e cala!
Depois de saber fazer
Saber que não há parar.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Criador

Por cima do mar
Um manto macio, a ser horizonte
Com o sopro vida dava
Um toque e o toque gatinhava
A planície fazia-se monte.

E fez o azul
E o sol
E a rosa
Fez poesia
Escreveu em prosa
E música que sem instrumentos
Se ouvia.

No silêncio.
As folhas falavam
Mudas, conforme o plano
Como foi que da harmonia
Se fez o globo insano...?

Do pó, do nada
Nasceu o espelho do Criador
Que pensa e ama e sente
Mas, ah, obra-prima doente
Também Cria, Dor.

Do mais alto pilar
Faz-se a sombra
A falha no absoluto amor
Mas atenção, não existe o frio
Apenas a ausência do calor.






domingo, 17 de fevereiro de 2013

48 horas

Dormi, e quando acordei tinham passado dois dias. 48 horas de sono, sono, essa pequena morte que a vida precisa... para viver. Se não existissem relógios, ter-me-ia levantado como se nada fosse, nunca adivinharia a pequena longa hibernação por que passara. Mas tudo está contado, e então sei que dormi dois dias. Até aqui, nada de fantástico, apenas de triste talvez, porque enquanto os meus olhos estiveram fechados a vida continuou ao seu ritmo e eu perdi partes do filme que bem vivido é uma curta-metragem. Com tanto descanso, passaram-se as horas acordado e o sono não chegou. Uma, duas, dez, vinte e quatro, quarenta e oito. Por fim, caí de novo na cama, depois de um longo dia. E de novo sonhei por dois dias. Não sei o que se passava, mas a minha nova rotina estava instalada, incompatível com a vida que os outros vivem. Os dias do calendário deixaram de fazer sentido, o relógio era um instrumento tosco, os meses eram seis e num ano meu os outros viviam dois. Não cheguei a perceber se vivia mais ou menos, sei que vivia diferente. Num mundo que corre acelerado, uma noite minha chegava para na manhã descobrir novas notícias que já eram velhas e descobertas já cravadas nos anais da história. Depois, conheci-a. Passei um dia com ela, um dia dela, note-se. E ela encheu-me. Encheu-me como o ar enche um balão, dá-lhe forma, sentido, vida. Um balão vazio acha-se tão balão quanto os outros, mas depois de cheio e atado nada mais fará senão rebentar, para sempre. E como o balão sobe, eu subi contigo. E vi tudo, num dia; do alto vê-se mais, o horizonte alarga-se, deixamos de perceber onde está o céu e é tudo tão pequeno que nos cabe na palma da mão. Somos reis de um reino sem gente, não é necessário povo para aclamar uma coroa tão natural, e que tão bem encaixa. Todos os verbos se conjugavam no plural, na primeira pessoa. Menos o verbo dormir. Chegou a hora de ela descansar e adormeceu. Pediu-me que dormisse a seu lado e eu disse que sim, sem lhe contar na minha condição peculiar, o meu duplo sono e o meu duplo dia. Toda a noite dela contemplei-lhe rosto sonhador, a sua cara de anjo. Onde estava, ninguém lhe podia fazer mal porque o mal simplesmente não existia. Era tão bonita, tão divinal, e ainda assim estava ali comigo, nos meus braços. Minha. Aos poucos aproximou-se a sua manhã... e a minha noite. Adormeci antes que acordasse. Sonhei com ela a noite toda, nada que me lembre, nada para além da sua presença. Como se o sonho fosse um espaço aberto ocupado por coisas aleatórias e naquele momento nada mais tinha vaga senão o seu olhar, os seus lábios, os seus cabelos. Quando acordei, ela não estava lá. Por certo adormecera noutro lado, no mundo normal onde o dia e a noite têm vinte e quatro horas e onde eu não mais pertencia. Procurei-a, claro, mas a minha jornada dava passos mais largos que a dela, e perdia-a. O meu balão, que subira tão alto, rebentara. Para sempre.

De Gizé

Olha para cima.
Queres subir?
Enche-te de força
Que a paixão a tua garganta retorça
Invade-te de ti próprio
Faz um grito de calma
Uma arma da alma
Inspiração como ópio.

Ninguém é por ti.
Se fosse, para quê viver?
Chora, berra, esperneia;
Emociona-te. Levanta-te. Faz bela a cara feia.
Se fores um peixe come uma baleia
O oceano está a ver
E nem o céu é o limite!
Faz com que Deus te imite.

Pensa, usa a mente.
Tens pernas para andar, portanto corre.
O tempo morre
Ninguém o socorre
Não fiques a ver.
O mundo é um quadro
Pinta a tela
Abre a janela
E voa...
Não respires à toa
Um dia vais não respirar.

Não dês tudo de ti,
Dá-te.
E se achares que é difícil
Lembra-te que o peão pode ser dama
Finta a vida, faz-lhe a cama
Um movimento e é cheque-mate.

Incomoda-te,
Olha para dentro,
Sente o choro, a dor, o frio
Ri com gosto, com amor, com brio.
Escreve, pinta, canta, enlouquece
E olha que de nada serve uma mão que aquece
Se o coração estiver vazio.