sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Que nem a morte vos separe, amén

Vasculhei as gavetas do teu quarto, à espera de te encontrar. Procurei-te debaixo da cama, atrás das cortinas, debaixo do tapete. Não estavas em lado nenhum. Pela janela olhei o céu, e nem daí sorriste para mim. A cidade cheirava a frio, ou era o meu coração, não sei. Voltei o meu olhar para dentro. Penduradas na porta do teu roupeiro estavam as sapatilhas de ballet, as tuas sapatilhas de ballet. Tuas. Peguei nelas. Os teus pés, outrora quentes e dançantes, tinham calçado aquelas sapatilhas. Engraçado. Tinha-las quando te vi pela primeira vez, no espectáculo da escola. Lembro-me perfeitamente do dia, da hora, do segundo e do que senti, talvez porque numa outra dimensão qualquer ainda lá estou especado, vendo-te dançar, o teu corpo flutuante ao som da doce música, ou seria o contrário, talvez por uma vez fosse a tua dança a dar origem à canção. Se a paixão nasce e tem pais, a mãe seria a tua dança. Foi ela quem te apresentou a mim. O pai, bem, os pais, seriam os teus olhos, de um azul que mais parecia pintado a lápis de carvão numa folha de papel de gente. Ah, que saudades, que saudades, o peito aperta de uma maneira que parece querer desaparecer dentro de si mesmo. Tentei distrair-me e explorar o teu quarto de novo. Era impossível não te imaginar ali comigo, o teu cheiro, a tua pele suavizada pelo creme nívea (o creme na prateleira olhava-me de gozo, sacana, vai embora!) , os teus lábios. Porque não levaste tudo contigo? Tenho tantas lembranças em mim, não precisava de recordações fora. De repente, vi-o. O diário. Conheci-te por dentro e por fora, mas no diário, nesse, nunca me deixaste tocar. Abri-o, da mesma forma malandra que uma criança rouba um chocolate, não por malícia, por desafio e reconforto. Procurei uma página ao calhas, desde que fosse escrita por ti, servia...

Querido diário,

Hoje o João beijou-me. Sim, sei que não foi a primeira vez, mas parecia! Estávamos num miradouro com uma vista brutal, sim, ele levou-me lá, e falámos muito. Falámos sobre o futuro, os filhos, a casa, o carro, até sobre a marca de leite que íamos comprar mais regularmente! De repente, ele olhou-me nos olhos, como se me estivesse a ler a alma, e disse que me amava. Parecia um menino pequeno, inocente. E foi como uma criança que ele me beijou, um beijo molhado, um carinho dos deuses, e logo depois abraçou-me. Éramos um. Se existissem dúvidas, morreram ali; o João é o homem da minha vida, é com ele que vou casar, e olha, não me importava de ser imortal com ele.

Não consegui ler mais. As lágrimas corriam à mesma velocidade que o filme daquele dia me passava pela cabeça; mas não eram lágrimas de dor, de tristeza, não; estava contente. Pessoas morrem velhas sem terem descoberto o amor, depois de o procurarem nos confins no mundo. Eu descobri-o, e descobri-o muitas vezes, num palco de dança, num quarto, num miradouro, e em muitos outros sítios. Enquanto pensava nisto, uma fotografia caiu do diário. Éramos nós e estávamos a sorrir para a máquina. Não sei onde estás, agora, tal como não sabia de ti antes de te conhecer. Mas fizemos uma pausa na vida, eu e tu, e nessa pausa descobrimos algo que a morte não pode nunca separar.

4 comentários:

  1. com simples palavras, deste origem a um lindo, maravilhoso e complexo texto!
    eu só sei que podes ouvir que existem muitos como tu, mas o talento de cada um é único e o teu é muito especial! um dia fazes um livro só com palavras minhas :D adoro-te di <3

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  2. Lindo :'
    Tão verdadeiro *

    Sigo :)

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  3. porque é que eu só li isto hoje???

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Comentários