terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Amor feito

Pedaços de baton e gravata
Pelo chão,
Máscaras que foram e encantaram
E já lá vão.

Agora só a alma nua
Como os corpos quentes que se amam.
Um rio de prazer
A solidão que morre
Amor a acontecer.

Não há adeus porque tudo é eterno
E terno.
Numa pequena cama num pequeno mundo
Há tudo o que é preciso
E a noite, amiga
As estrelas e a lua aos lençóis liga
E abre-se num misterioso e largo sorriso.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A ponte a arder

Estava sozinho numa ponte
E essa ponte era de madeira.
E essa ponte de madeira ardia.
E já contigo, eu só, fugia
Da morte que, do passado, era certeira.

Abaixo de nós só escuridão cerrada
Um vazio de se ser e de sentir;
E cada corda ou madeiro despedaçado
Era o fim que era contemplado
A solidão, como tigre, a rugir.

Queria o meu coração o teu agarrar
Mas a confiança era mais frágil que o carvão.
A ponte da amizade para o amor é traiçoeira:
E se me agarrasse ao ar? Viver? De que maneira?
Antes que servisse a morte de consolação.

A ponte desabou, por fim
E em queda livre, senti pedido o teu desejo.
Daí a agarrar foi um momento
Caímos, juntos, e o não lamento
Estava seguro pelas cordas de um beijo.

Estrelas cadentes

Podíamos era passar menos tempo a pedir desejos e mais a empenhar-nos por ser o desejo concretizado de alguém.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Dois desejos

Era uma vez uma doninha e uma rapariga. Para além de ambas falarem, que não seria caso digno de nota se uma delas não fosse de facto uma doninha, a única coisa que elas tinham em comum era o fracasso no sonho das suas vidas. A menina, que vivia numa aldeia muito longe daqui (onde quer que esteja a ser lido este conto, será sempre muito longe daqui), desejava ter um iate enorme, para poder partir à descoberta do mundo e ir reunindo amizades, pois na sua terra os habitantes eram muito idosos e nunca dali saíra. Quando à doninha, ansiava por encontrar um bonito ornamento de cristal com que se pudesse enfeitar, pois o agradável aroma que costumava exalar (note-se aqui o uso da ironia) afastava qualquer hipótese de relacionamento. De facto, a floresta onde vivia (perto da aldeia da rapariga) era já quase inabitada, pobre doninha. E assim a nostalgia pautava a existência das pobres criaturas, como se fosse possível haver saudade do que nunca se teve.
Um dia, a menina resolveu sair à rua e, olhando para a floresta, algo a chamou, como se o verde das árvores de repente se tivesse transformado em esperança profetisa e alguma coisa lhe dissesse que ali encontraria algo. Não um iate, claro, mas algo. E lá foi (ainda bem que, nestas alturas, não existem flores para regar ou batatas para descascar, o que seria dos contos fantásticos se as cinzentas lides domésticas entrassem na equação), toda contente, embrenhando-se bosque dentro.
Andou, andou, andou. Nada encontrava, talvez porque seja mais complicado quando não se sabe o que se procura. A certa altura, sentiu um cheiro estranho no ar; olhou em volta e lá a viu, sentada numa pedra, a nossa amiga doninha. Fez tenção de se aproximar, ao que a doninha avisou qualquer coisa do género, O cheiro piora com a proximidade. Mas a rapariga dava passos pequenos e seguros, descobrindo aquele cheiro aos poucos, e ainda que a sua repugnância fosse inegável, não deixava de ser suportável. Daí a nada, estava sentada ao lado da doninha, como se também ela tivesse o seu próprio defeito nauseabundo, uma tristeza não cheirada pelo nariz, mas pelos olhos, canal directo ao coração. Aguentas o cheiro?, perguntou o animal, Sim, não tem nada de mal, não te preocupes, respondeu a pequena. Porque estás aqui sentada? Estava para aqui a pensar para com os meus botões e estava a perceber que não tenho botões no momento em que tu chegaste. Se não tens botões, pensa para comigo, sugeriu a menina. Bem, começou a doninha, precisava mesmo mesmo de um feiticeiro qualquer. Não fazes bruxedos, não? Não, mas também me dava jeito um, informou a rapariga, Achas que está algum debaixo dessa pedra? Definitivamente não, e olha que eu sou uma doninha que usa advérbios de modo, saberia se um feiticeiro estivesse escondido nesta pedra. Então, disse a rapariga, já zangada, Vamos procurar um! Aí sentada é que não o encontras.
E foram as duas pela floresta, à procura de um feiticeiro qualquer. O dia avançou e a noite caiu sem que o encontrassem. Procuraram, procuraram, voltaram a procurar, mas embrenharam-se tanto no bosque que as árvores tapavam o pouco luar que lhes ia alumiando o caminho, pelo que pararam. Conversaram sobre os seus sonhos, aquilo que desejavam do feiticeiro qualquer; a doninha contou que quando conseguisse o seu ornamento de cristal iria sair daquela floresta e arranjaria um monte de amigos, também eles giros e enfeitados, que não notassem o seu mau cheiro no meio de tanta beleza cristalina. A rapariga, por outro lado, falou no iate pelo qual ansiava, e explicou que com ele visitaria o mundo inteiro e que em cada país faria um amigo e que o convidaria a viajar consigo na embarcação, tanto que a certa altura o próprio barco fosse um mundo em ponto pequeno.
Enquanto sonhavam e suspiravam, ouviram o crepitar de fogo; ao principio o som parecia apenas ramos de árvore a partir com a força do vento, mas depois lembraram-se que não havia vento e foram investigar, até que chegaram a uma clareira. Nessa clareira, um velho de rosto carrancudo parecia meditar em frente a uma fogueira. Tudo no homem era singular; vestia uma túnica longa e branca, desfeita nas pontas pelo tempo, estava sentado numa pose muito estranha e a barba devia ser do comprimento das primaveras que já contava. A doninha e a rapariga aproximaram-se, movidas pela curiosidade e pelo desejo: Seria aquele um feiticeiro qualquer? Sim, sou, disse o velho, sem esperar pergunta. E sei o que pretendem. E podes dar-nos isso?, perguntou a doninha, Posso dar-vos o quê?, cuspiu o velho, Ora, respondeu a menina, aquilo que pretendemos. O que é que vocês pretendem?
O homem devia ser maluco, não dizia coisa com coisa. Afinal que raio de feiticeiro era aquele? Já desanimadas, falaram-lhe do iate e do ornamento de cristal, ao que o velho escutou, atento, ao mesmo tempo que meneava a cabeça em sinal de desaprovação. Então, concluiu ele, Eu sei o que vocês pretendem melhor do que vocês mesmas. Tomem. Passou-lhes para as mãos dois bocados de cartão cobertos por uma camada prateada. Uma raspadinha para cada uma. Raspem, informou ele, E se nas raspadinhas aparecer três vezes o desenho desse vosso sonho, então ele será vosso. E desapareceu.
Esperançosas mas ao mesmo tempo desconfiadas, as duas personagens sentaram-se na clareira com as suas raspadinhas. Os cartões estavam delineados de modo a haver uma divisão em três partes, cada uma delas escondendo os desenhos. Cada uma delas raspou dois e, para sua surpresa, em cada raspadinha calhou um par de desenhos correspondentes ao desejo do seu portador: à doninha um par de ornamentos de cristal e à rapariga dois iates. Ena, isto está a correr bem, não está?, perguntou a rapariga, Sim, parece que sim, concordou a doninha. Nenhuma delas parecia assim tão animada. Pareciam recear o que estava por detrás da terceira parte. No fundo da cabeça de cada uma, corriam muitos e muitos pensamentos, escondidos por uma fina camada de cor de prata. Raspamos ao mesmo tempo?, sugeriu o animal, Sim, aceitou a menina.
1, 2, 3 e... surpresa. No cartão da doninha apareceu um iate e no da rapariga um ornamento de cristal. Não havia nada para ninguém. Olharam uma para a outra e perceberam; momentos antes de rasparem a derradeira parte, desejaram no fundo do coração que não lhes calhasse a combinação vencedora. Tinham encontrado tudo aquilo que queriam sem precisarem de iates caros ou ornamentos exuberantes, a única coisa que fizeram foi sonhar e por pernas ao caminho. Os cartões combinados dariam para concretizar os sonhos, e a ideia era essa: juntas, teriam toda a amizade de que necessitavam, e juntas podiam descobrir o mundo, sem medo de solidão ou cheiros desagradáveis.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Que nem a morte vos separe, amén

Vasculhei as gavetas do teu quarto, à espera de te encontrar. Procurei-te debaixo da cama, atrás das cortinas, debaixo do tapete. Não estavas em lado nenhum. Pela janela olhei o céu, e nem daí sorriste para mim. A cidade cheirava a frio, ou era o meu coração, não sei. Voltei o meu olhar para dentro. Penduradas na porta do teu roupeiro estavam as sapatilhas de ballet, as tuas sapatilhas de ballet. Tuas. Peguei nelas. Os teus pés, outrora quentes e dançantes, tinham calçado aquelas sapatilhas. Engraçado. Tinha-las quando te vi pela primeira vez, no espectáculo da escola. Lembro-me perfeitamente do dia, da hora, do segundo e do que senti, talvez porque numa outra dimensão qualquer ainda lá estou especado, vendo-te dançar, o teu corpo flutuante ao som da doce música, ou seria o contrário, talvez por uma vez fosse a tua dança a dar origem à canção. Se a paixão nasce e tem pais, a mãe seria a tua dança. Foi ela quem te apresentou a mim. O pai, bem, os pais, seriam os teus olhos, de um azul que mais parecia pintado a lápis de carvão numa folha de papel de gente. Ah, que saudades, que saudades, o peito aperta de uma maneira que parece querer desaparecer dentro de si mesmo. Tentei distrair-me e explorar o teu quarto de novo. Era impossível não te imaginar ali comigo, o teu cheiro, a tua pele suavizada pelo creme nívea (o creme na prateleira olhava-me de gozo, sacana, vai embora!) , os teus lábios. Porque não levaste tudo contigo? Tenho tantas lembranças em mim, não precisava de recordações fora. De repente, vi-o. O diário. Conheci-te por dentro e por fora, mas no diário, nesse, nunca me deixaste tocar. Abri-o, da mesma forma malandra que uma criança rouba um chocolate, não por malícia, por desafio e reconforto. Procurei uma página ao calhas, desde que fosse escrita por ti, servia...

Querido diário,

Hoje o João beijou-me. Sim, sei que não foi a primeira vez, mas parecia! Estávamos num miradouro com uma vista brutal, sim, ele levou-me lá, e falámos muito. Falámos sobre o futuro, os filhos, a casa, o carro, até sobre a marca de leite que íamos comprar mais regularmente! De repente, ele olhou-me nos olhos, como se me estivesse a ler a alma, e disse que me amava. Parecia um menino pequeno, inocente. E foi como uma criança que ele me beijou, um beijo molhado, um carinho dos deuses, e logo depois abraçou-me. Éramos um. Se existissem dúvidas, morreram ali; o João é o homem da minha vida, é com ele que vou casar, e olha, não me importava de ser imortal com ele.

Não consegui ler mais. As lágrimas corriam à mesma velocidade que o filme daquele dia me passava pela cabeça; mas não eram lágrimas de dor, de tristeza, não; estava contente. Pessoas morrem velhas sem terem descoberto o amor, depois de o procurarem nos confins no mundo. Eu descobri-o, e descobri-o muitas vezes, num palco de dança, num quarto, num miradouro, e em muitos outros sítios. Enquanto pensava nisto, uma fotografia caiu do diário. Éramos nós e estávamos a sorrir para a máquina. Não sei onde estás, agora, tal como não sabia de ti antes de te conhecer. Mas fizemos uma pausa na vida, eu e tu, e nessa pausa descobrimos algo que a morte não pode nunca separar.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O ladrão

O ladrão vagueia de noite
Quando os candeeiros sussurram luz.
Não se importa com vida ou coração
Ou com pobre decoração
O que ele só quer é roubar.

Assalta-me a cama que mais me protege
Que o quarto
Leva-me o que tenho
Que não é nada
Leva-me a alma, inacabada
Leva-me o fogo e deixa o lenho.

Que ladrão é este
Que até o meu amor leva consigo?
Não tomado
Dado como amigo.
Ladrão de meia-noite, que me inspira
Não é maldade o que respira
É sonho adocicado.

Oh ladrão, regressa
Volta a quem te deu a vida
E eis que verdade esquecida
Na minha mente tropeça:

O ladrão é meu
Porque o ladrão sou eu
Que fujo noite dentro, vagabundo
Por entre os poemas nocturnos fecundo
Letras que hão-de rimar.
Porque eu só quero sair
E roubar
Roubar matéria com que se escreva
Mas ai de mim que me atreva
A minha cama abandonar.

E o meu eu ladrão vai ficar de mim órfão
Sozinho há-de viver
Amar, andar, sofrer
Tudo olhar, tudo escrever
E eu aqui, como é de lei.

(Se ao menos eu tivesse asas,
Ou este chão fosse de brasas...)


Hoje em dia escreve-se sobre tudo

É contigo que limpo o mal do meu pequeno mundo. Se fico muito tempo sem tratar de ti, ficas duro e frio, como se amuasses, mas eu não tenho a culpa! Eu sei, tu também não. E sei que só estás bem enquanto fazes bem aos outros, é simultâneo, e ninguém te dá valor por isso. Por vezes sinto que nasceste de propósito para essa vida de servidão, outras penso que vieste de um outro fazer mais digno e vistoso. Não sei. De qualquer das maneiras, a verdade é que te dão mais valor antes dessa vida de entrega do que depois, quando o brilho sai todo de ti para quem o dás. Não posso fazer nada, de facto. Mas agradece-me pelo menos por este textinho, olha que nunca ninguém escreveu sobre panos da loiça.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Perdoa-me

Esqueci-me de ti. Esqueci-me das letras, das palavras, das frases, não daquelas que já escrevi mas sim daquelas que ainda tenho para tecer, como aquelas que agora desenho como um menino que foi apanhado pela professora a roubar um pau de giz e descobria a vergonha. Há um problema na nossa relação, sabes? Os beijos que damos são só de mim para ti, só tocas os meus lábios se os abrir para ti e por vezes perco-me nos beijinhos da vida que não é de papel. É mais platónico que físico, o nosso amor, porque muitas vezes penso em ti e desejo-te e sonho contigo mas não me dá para te vir abraçar. Não me dá, que expressão pachorrenta e nojenta, como esta rima podre que não consegui fintar. Há outro problema no nosso casamento. Nunca te poderei perder. Se me cortassem as mãos e eu mais não pudesse acariciar-te a essência, talvez aí mais que nunca eu ansiasse por me deitar na cama contigo. Mas ninguém me vai cortar as mãos e para sempre o nós será um Sol que está lá sempre mas cada dia nasce ou não conforme os ponteiros ao acordar e as folhas da agenda. Hoje, que resolvi vir fazer-te esta declaração, li pelo caminho um poema sobre mortes lentas. Não quero morrer antes de fechar os olhos para o sono eterno e a minha vida és tu. Era agora que juraria nunca mais te deixar e que amanhã viria fazer-te a corte à tua janela, mas não sei como nascerá o Sol, para mim, amanhã. Perdoa-me que te ame assim, mas é o amor que tenho para te dar, é a água que tenho para te regar e   és tu uma flor que não pode nunca murchar, a menos que arrancada. Nunca vais deixar a terra, só espero um dia poder afogar-te como outrora fiz.