Procuro-te.
Nestes versos tentativas de ti, procuro-te,
Nas linhas que teço - e as que já teci, a julgar que vinhas -
Nas rimas que peço - e as que já pedi... mas são todas minhas.
Procuro-te.
Em todos os sítios em que já te vi um dia, procuro-te,
Em todo o lado. E não estás em lado nenhum,
Se calhar és tudo e não te vejo
Fico-me beijo mudo e não te beijo,
Mas procuro-te, quero saber a torre em que te fizeste
E que me contes a morte que ao dragão deste,
Já que não o deixaste para mim.
Creio que já sei o começo,
Diz-me o meio,
Diz-me o fim.
Hei-de achar esse labirinto para que enfim não mais me perca,
Hei-de achar-te, saber-te e contar-te de ti,
Cantar-te os poemas por fim tecidos das linhas tuas,
Descobrir-te as roupas e deixá-las nuas pelo chão.
Hei-de ser Ícaro e se me derreterem as asas de cera,
Grandes que serão da espera já só me deixarão cair
Para ti.
terça-feira, 11 de outubro de 2016
sexta-feira, 7 de outubro de 2016
A planta
A planta está ressequida no vaso. Não tem sede, sede tem-se quando se sabe ainda o que é a água, a mágoa, que é falta dela, faz as vezes de afogar. Poderia dizer-se, e será dito agora mesmo, que há sedes que só se sentem depois de beber. Tenho para mim que se alguém, um jardineiro provedor, der um pouco de amor que seja, perdão água, quero dizer água, à planta ressequida, ela tornará a ter sede e ansiar por anos dela até que a secura esteja tão só num futuro passado de beber, e em que nem se pensa. Assim, assim estou certo que não se levantará do vaso e será cada vez menos planta e mais ressequida, até que o tempo lhe leve o nome e deixe somente apostos mortos e pretéritos. As raízes que beijavam a terra, há muito se despediram com ela das razões dos apaixonados ósculos. É possível que recordem juntas alturas em que eram mais pequenas e todavia sabiam poder crescer por onde e como quisessem, todos os lugares estão vagos e nenhuns lugares são vasos. Que afronta esta de fronteirar vida, prometer dar em mão o que de outro modo vem de mão nenhuma, afinal o prometido é de vidro. Fosse de vidro o vaso... mas não é, nem barro, é tijolo e cimento de quarto que se despede jurando voltar de dia, enquanto leva sob o braço os relógios e as janelas.
quarta-feira, 5 de outubro de 2016
A Maria e o Mar
Quando a monitora pediu que cada um procurasse uma concha à beira-mar, a pequena Maria tinha os olhos apaixonados por uma estrela do mar ali perto dela. Como olhos apaixonados toldam a escuta, naturalmente a menina pareceu acordar de um transe confuso ao ver todos os seus amigos desatarem a correr numa instantânea harmonia que logo se desalmou. Instintivamente, seguiu-os e logo se apressou a perguntar a um dos rapazes o que era suposto fazer e logo que soube, pôs os olhos ainda inebriados na procura da dita concha. Os amores das crianças são muito voláteis, não por amarem depressa, sim por amarem tudo. Assim, perdida entre estrelas e conchas, a Maria foi correndo à beira-mar e logo o coração se quedou por aquela força que o mar faz nos pés corridos, e imediatamente depois pelas gotas que lançava ao ar e que o Sol, de algum modo, pintava de todas as cores. Este namoro com o mar seguiu numa calma sentada a sentir a maré, um sossegado embalo a mirar as ondas lá ao fundo, como se cantassem, e como eram belas e tão perigosamente inalcançáveis, tão cativantemente imensuráveis. Não durou muito até que o menino que actualizara a Maria o fizesse de novo chamando-a, tinha findado o tempo da procura pela concha, não que a menina tenha percebido logo o porquê de a estarem a chamar. A concha! Não tinha nenhuma. Rapidamente deitou a mão à primeira que viu, meio enterrada, e correu para junto dos outros, que já iam exibindo as suas, cheias de cor e formas perfeitas. Lavou a sua e assim que a água doce a despiu de sal e areia, deixou perceber que estava partida; um golpe de lado, género triângulo, perfeito ainda que dentro da sua existência de conceder imperfeição. Quando a monitora pediu que explicassem o porquê da escolha, a pequena Maria tinha os olhos desapontados, e mais uma vez não ouviu, tão pouco falou quando despertada pelo mesmo menino. Não havia razão. As lágrimas caíram-lhe pelo rosto. A monitora, num momento de inspiração, num acesso alquímico, informou o grupo que tinha novo desafio. Levou-os todos de regresso à areia húmida e lançou o repto de serem lançadas ao mar todas as conchas que tinham resgatado antes. Pedindo que se sentassem, explicou que era o vento lá longe que formava as ondas e que era a Lua, mais longe ainda, que ameaçava sequestrar o mar para logo o trazer de volta. Explicou que o mar, de algum jeito, gostava mais da Lua e que fazia como ela; fingia levar tudo para depois, desta ou daquela forma, devolver. Passados que eram alguns minutos, a monitora incitou-os a procurar a mesma concha que tinham atirado, prometendo-a de prémio a quem fosse capaz. A Maria, ainda decepcionada pelo seu feio achado, lá foi em sua busca. Todas as demais crianças buscavam avidamente a jóia que sentiam ser sua, a Maria ia deitando o olhar aqui e ali nos pequenos embrulhos que vinham enlaçados de mar. Lá estava ela. A mesma concha, partida, imperfeita de triângulo perfeito, do mesmo lado. A menina sentiu batidas mais fortes que os estrondos dos oceânicos tambores, era a mesma concha, e não lhe era tanta a inquietude pelo ganhar do jogo senão pelo amor que se sente quando ele surge de onde se julgava inexistente. Não a quis tanto por ser prémio, senão por ser conquista. Num ápice agarrou-a e se na primeira vez não tinha sequer olhado, agora já tinha olhado e visto e conhecido aquele pedaço do seu amado mar e tomou-a como sua, como anel de noivado. Daí em diante, todas as lágrimas que a pequena Maria chorou foram todas beijos do seu esposo, curiosamente, ou não, nos momentos em que mais deles necessitava.
A pulga
Vejo uma pulga que não consegue saltar e compreendo a tragicidade do destino do pobre bicho, uma pulga que não pula perde logo assim quatro letras, quedando-se num engasgo ignóbil. Desperdiçam-se num andar desengonçado pernas talhadas para saltar, talvez se tenha distraído o artesão na circunstância de conceber este insecto, talvez menos se debruce por tão rasteiros seres, isso não, afinal todas as borboletas voam, todas as aranhas tecem, todas as pulgas pulam. Menos esta. Está entregue à tortura de sonhar com saltos grandes, enormes, tão maiores que si mesma que por sua vez dão ao sonho o sonho de voar, fardo em jeito de asas de pedra alva e reluzente, não muito diferentes, ao longe, das dos anjos, ao perto, das que trago comigo. Eis que a pulga que não pula... faz à mesma comichão.
quarta-feira, 21 de setembro de 2016
Universos
Como estas linhas que vedes
Alheias a fomes e a sedes
Seguem ordeiras
Cegas obreiras
As formigas.
Aversas a cantigas são
E não se canta sobre elas;
Formigueiros edifícios erguem
E ainda que os olhos não se ceguem
Não vemos as filas belas
Não nos toca pensar como elas...
Não vemos como deve ser.
Outras vistas se leve ao ser
Que só é no plural,
Uma equação especial,
Todas são, nenhuma é.
Não sei se será acaso de fé
Ou um ocaso de alma,
O que faz perder a calma
Ao bicho que cem vezes o peso levanta
E que a cem outros assim a fome espanta,
Mesmo que para tal empreitada
Deixe a vida assim largada
A um passo incauto meu.
Talvez não lhe cheguem as antenas ao céu,
E tão só saiba o pó da terra,
Ganha sem saber a guerra
Por não saber estar a lutar.
Era disto por certo que a cigarra cantava
Das pautas que os carreiros pintam,
Era disto que ela falava
Por mais que outras fábulas mintam.
Viu a proeza em uma apenas
A riqueza de quererem ser penas
E não um pássaro para voar.
Alheias a fomes e a sedes
Seguem ordeiras
Cegas obreiras
As formigas.
Aversas a cantigas são
E não se canta sobre elas;
Formigueiros edifícios erguem
E ainda que os olhos não se ceguem
Não vemos as filas belas
Não nos toca pensar como elas...
Não vemos como deve ser.
Outras vistas se leve ao ser
Que só é no plural,
Uma equação especial,
Todas são, nenhuma é.
Não sei se será acaso de fé
Ou um ocaso de alma,
O que faz perder a calma
Ao bicho que cem vezes o peso levanta
E que a cem outros assim a fome espanta,
Mesmo que para tal empreitada
Deixe a vida assim largada
A um passo incauto meu.
Talvez não lhe cheguem as antenas ao céu,
E tão só saiba o pó da terra,
Ganha sem saber a guerra
Por não saber estar a lutar.
Era disto por certo que a cigarra cantava
Das pautas que os carreiros pintam,
Era disto que ela falava
Por mais que outras fábulas mintam.
Viu a proeza em uma apenas
A riqueza de quererem ser penas
E não um pássaro para voar.
quarta-feira, 11 de maio de 2016
Contas e contos
Como entendo muito pouco de números, pedi ao senhor das finanças que me traduzisse de forma simples o número que aparecia no monitor da máquina calculadora. Então, disse-me ele sem rodeios, isto significa que você é pobre. Era então aquilo que significava o tracinho no ecrã, pensei, normalmente uso-o em palavras ou para iniciar diálogos, bem, para isso não tanto. Imagino que o homem me tenha olhado e lamentado a já avançada idade, por certo achou-me já senil, incapaz de atingir a gravidade da situação. Muito devagarinho, tentou novamente mascarar os números de palavras, avisou-me dos ganhos e das perdas e, tenho a noção, falou muito mais destas últimas. Mas eu não perco nada senhor doutor, acabei por dizer, pelo menos tento. Ainda hoje perdi um barco mas ao menos não perdi a paciência e claro está, logo depois veio outro, também uma coisa tão grande não se pode perder durante muito tempo, não é doutor? O homem sorriu, todavia pareceu-me que apenas se lembrou das aulas que o mandavam ser simpático com um cliente. Logo se apressou a explicar que não era esse tipo de perdas a que se referia, como se eu não soubesse, que perda tinha sido, por exemplo, o dinheiro que eu tinha gasto no bilhete dessa viagem. Persisti no papel de velho tolo. Ah, presumo então que a viagem de regresso tenha sido uma perda também, sim? E a imperial que bebi na esplanada da outra banda, a moeda que pus nos binóculos... Exacto, interrompeu-me ele, tudo isso foram perdas, despesas, dinheiro que podia ser poupado, talvez com menos algumas viagens possamos tornar este vermelho em verde. Verde é bom? Verde é óptimo, retorquiu o senhor das finanças, visivelmente satisfeito por eu estar, por fim, a entender. E talvez haja melhores coisas em que gastar o dinheiro, vejo por exemplo que quase não tem despesas em medicação, um senhor da sua idade certamente... Não, foi a minha vez de interromper, estou rijo como um pêro. Acho que se a minha médica estivesse aqui connosco talvez se sentasse do seu lado, ela também tem lá as máquinas de calcular dela, mas prefiro tomar o ar salgado das minhas viagens de barco. Deixe lá que nem sempre tenho... despesa, quando me vou assim medicar, tem vezes que passeio só pela areia e a minha visita lá à outra margem se faz só com os estes meus olhos. Olhe, continuei eu, outra coisa que não perdi, a visão, meteu isso aí nos ganhos? O homem olhou para mim exasperado mas insistiu, gabo-lhe a paciência, ouça, isso não conta... Ah, também isso, interrompi novamente, também ouço muito bem ainda, seria para mim uma grande despesa não poder ouvir o fado. Porém ouvi dizer que quem não vê, ou não ouve, tem tendência a apurar os outros sentidos, acho eu, que não percebo nada disto, há um financeiro qualquer que sempre nos dá aquilo que tira, não de igual forma, isso seria monótono, uma perda... de tempo. Houve algo no que eu disse que pareceu esclarecer, de algum modo, o senhor das finanças. Você não pode colocar tudo nas mãos de Deus, disse-me ele, Deus?, perguntei. Sim, esse financeiro de que fala, Deus até lhe pode ter dado a visão e a audição mas... Não estava a falar de Deus, cortei eu, ou talvez estivesse, mas enquanto não souber se existe, quem é, poupo o tempo de me ocupar com essas perguntas e deleito-me com as respostas. Vêem-se do barco, sabe, ou nele, conforme a disposição, descobrem-se na areia, vislumbram-se dos miradouros. A face do homem era de derrota, de desistência. Então eu prossegui. Dizem-me pouco esses números, sabe. A sua máquina não lhe poderia dizer o número de horas que estive no barco, que passeei pelo areal, que olhei lá do topo da colina, nem eu, para ser honesto, e o ponto é esse. Tão pouco contei o prejuízo, como já reparou. Uma vez li num jornal que apenas uma ínfima parte da água do nosso planeta é potável, o senhor saberá certamente os números, as percentagens, e por certo se assustou com eles quando os leu. Para si, foi só prejuízo. A mim lembrou-me a sorte de num ápice ter água doce a correr de uma torneira, essa água que você tem aí nos gastos e lembrou-me, a mim que sou apaixonado pelo mar, que há muito sal para saborear. Para mim, foi só lucro. O doutor tentou falar mas é curiosa essa circunstância de as equações terem um fim, ao passo que as palavras se desdobram. Eu não sou pobre, nem sou rico, prossegui, eu chamaria rico, e creio ser uma descrição possível, a quem tem o que os outros não têm, pelo menos em igual quantidade. O que eu tenho você tem, a questão é, e perdoe-me o atrevimento de usar expressões tão próprias do seu vocabulário, calcula o quanto pode perder se não observar, se não escutar, se não saborear com atenção, se não tocar... Tal vez conheci uma mulher que parecia uma brisa mas conjuguei com ela todos estes verbos e descobri um maremoto, um incêndio, um furacão. Há muito que ganhar, é aí que quero chegar, muito que descobrir. Mas nada para possuir, aviso-o já e olhe que disto já percebo. Essa mulher, por exemplo, nunca me pertenceu, não a mim, não a ninguém, lá está, como um furacão. Isto, traduzido aí nos seus números, esta brincadeira de tudo o que se soma se subtrai em simultâneo, daria um redondo zero, portanto diga-me como seria possível que eu desse valor às suas equações. Calei-me. O senhor das finanças limitou-se a dizer, fico feliz por si, há mais alguma coisa em que o possa ajudar? Não, retorqui, e não quero roubar mais tempo ao caro doutor, ainda que o tenha bem mais que eu, nem às pobres almas que penam nas salas de espera. Se calhar de caminho ensino-as a tirar maior proveito desse tempo em que só esperam, está visto que o senhor dessas contas percebe pouco, mas não se ofenda; antes de ouvir este pobre velho, não percebia nada.
terça-feira, 3 de maio de 2016
Pianista
Traz de uma vez as tuas delicadas mãos. Trá-las, pianista, e toca-me, tu
sabes as teclas, conheces as cordas. Repara, sou um piano selvagem.
Livre, diriam uns, terão acaso eles visto um piano solto e vivo e que o
fosse em simultâneo. Tu sabes a verdade, pianista. Ninguém me ouve
aqui, ninguém, mesmo que em vezes o vento venha e me leve os sons. Quem
fala do sopro da vida nunca terá, estou certo, sido tocado por quem sabe
tocar, por quem, como tu pianista, faz da música um incêndio e fogo de
quem a ouve. Vem e arruma-me num quarto, arruma-me nas tuas mãos,
sobretudo arruma-me as notas. Tenho todas as que há no mundo e são todas
tuas, verás esse mundo, prometo-te. Eu enfim verei contigo. E todos nos
ouvirão, pianista.
domingo, 1 de maio de 2016
Miragens
Quanto mais te quiser ver, mais tenho que fechar os olhos. Aprendi há muito, sabes, a perceber o sonho pelo que ele é. Fontes de água que se faz gás, paisagens que se confundem e se revelam miragens. Então, se te vejo, cerro os olhos. Claro está que sei logo que és gás, que és miragem. Que mais poderias ser? Contudo, fecho os olhos. É que, sabes, sou já também capaz de me deixar acelerar as batidas pelas mentiras que o sonho traz. Porque não? Tentar beber a água, tentar ver as paisagens, o mar, tentar sentir-lhe o aroma. Sem nariz, sem boca, só de olhos bem cerrados e orante a uma noite que mente, sim, todavia fá-lo tão bem... Sei tudo isto de tal forma que não me importa a manhã, para que quero esse sol tedioso que sabe somente mostrar-me o que é e o que está, incapaz de me trazer a maresia que eu conheci um dia. De manhã tudo é real, sabes, mas esta água que não se esfuma, tão pouco me mata a sede.
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