sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Guerra e Paz

A planície podia até ser bonita, não estivesse recheada de metal e sangue e carne, crateras de explosões, elevados montes sem-vida. O Sol rompia o horizonte e, se iluminar não fosse uma obrigação sua quem sabe encomendada por Deus, provavelmente levaria a sua aurora para outros locais merecedores de serem beijados pelos seus raios.
Aconteceu neste cenário que dois sobreviventes, dos poucos que poderão ter havido e mesmo estes por pouco tempo, que a morte já aí vinha, definhassem perto um do outro. Um deles, falou, e foi esta expressão que chamou à atenção do segundo:
-É isto o Céu?
-Ainda não, e espero que não seja assim... - respondeu o segundo soldado, com a voz a fugir-lhe - De qualquer modo... não creio que seja o Céu a nossa próxima e derradeira paragem.
A estas palavras seguiu-se um momento de silêncio; ambos as digeriam e cada um mais que o outro as sabia verdadeiras, fatais, trágicas. O primeiro olhou em volta, a toda a largura do campo de batalha, e disse:
-Quantas vidas tirei esta noite?
-Quem tentou tirar a minha já veio tarde, que vida é para quem a merece viver.
-Eu não queria vir... eu não queria... eu fui obrigado! - as lágrimas inundaram-lhe os olhos, mas vinham frias, como se para aquele corpo o calor tivesse sido algo de outros tempos, outra vida.
-És meu inimigo ou defendes as minhas cores? - perguntou o segundo homem. De facto, por mais que olhasse a farda do soldado, a sujeira imunda de sangue e terra e fuligem escondia quaisquer pistas do lado da barricada dele.
-Que interessa isso? Matas-me, agora? Olha para nós, cobertos de sangue e suor. Foram só nossos e, ah!, morreria feliz. Mas não, levo para a morte sangue de mortos, mortos por mim, mortos enquanto me tentavam matar... Morte, morte, morte, pensava que os seres humanos nasceram para viver e dar vida...?
-Não, não te vou matar. Faltam-me forças e vontade, bem, essa sempre me faltou. Acho que é uma boa altura para perdoar os pecados do teu país para com a minha nação...
-Que pecados? Hum?
-Então... eu... os pecados... eu... não sei.
-Porque lutávamos, quem defendíamos? Pedaços de papel e ouro, era quem defendíamos.
O pouco sangue que o segundo homem teria ainda no corpo subiu-lhe às faces, rosando-as; sentia-se envergonhado, usado. Olhou para si mesmo, como se esperasse ver sair dos braços cordas gigantes.
-Eu tenho um lar... terei? Foi há pouco tempo que me despedi da minha mulher e da minha filha, mas parece que passaram anos. Parece que sempre vivi aqui, e que essa vida que tive foi um sonho do qual acabei de acordar...
-Não! - o grito do segundo soldado ecoou pela planície sem vida - Não, agarra-te a isso. Se foi um sonho, pois que seja ele o teu redentor. Se acreditas em Deus, dá-lhe a conhecer, quando fechares os olhos, esse teu lado.
-Acreditas em Deus?
-Quero acreditar, se não houver nada para a frente, então que terei deixado eu para trás? Muito pouca vida, e muito mal vivida, e acabada a tirar outras que muito poderiam ainda viver. Quero conhecer Deus, pedir-lhe perdão, perdoar-me a mim próprio. E tu...?
-O meu Deus ficou em casa, junto com a minha família. Ao vir para aqui, ao servir fatos e gravatas que agora bebem sobre os nossos corpos, renunciei ao único Deus que alguma vez servi. E matei-o aos poucos, com cada bala que saiu da minha arma. Ah, sim, acredito em Deus, mas ele há muito que deixou de acreditar em mim.
-Para onde achas que vamos, então? - A pergunta não era de desafio, era da mais pura necessidade de conforto.
-Se não formos para sítio nenhum, estaremos melhor que aqui.
Se houveram mais palavras trocadas, estas foram inaudíveis. Talvez  trocadas pelo olhar, que as bocas perderam forças. Não tardou a que os olhos a ambos pesassem, sucumbindo sob um sono imenso. Adormeceram, e tal como milhares de outros, não mais acordaram.

1 comentário:

  1. Este conto, como tantos outros que aqui tens, arrepiou-me. Este até consigo ver todo o cenário, está muito visual. Passar-se-ia bem para a camara, um dia temos de pensar fazer nisso.

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