quarta-feira, 11 de maio de 2016

Contas e contos

Como entendo muito pouco de números, pedi ao senhor das finanças que me traduzisse de forma simples o número que aparecia no monitor da máquina calculadora. Então, disse-me ele sem rodeios, isto significa que você é pobre. Era então aquilo que significava o tracinho no ecrã, pensei, normalmente uso-o em palavras ou para iniciar diálogos, bem, para isso não tanto. Imagino que o homem me tenha olhado e lamentado a já avançada idade, por certo achou-me já senil, incapaz de atingir a gravidade da situação. Muito devagarinho, tentou novamente mascarar os números de palavras, avisou-me dos ganhos e das perdas e, tenho a noção, falou muito mais destas últimas. Mas eu não perco nada senhor doutor, acabei por dizer, pelo menos tento. Ainda hoje perdi um barco mas ao menos não perdi a paciência e claro está, logo depois veio outro, também uma coisa tão grande não se pode perder durante muito tempo, não é doutor? O homem sorriu, todavia pareceu-me que apenas se lembrou das aulas que o mandavam ser simpático com um cliente. Logo se apressou a explicar que não era esse tipo de perdas a que se referia, como se eu não soubesse, que perda tinha sido, por exemplo, o dinheiro que eu tinha gasto no bilhete dessa viagem. Persisti no papel de velho tolo. Ah, presumo então que a viagem de regresso tenha sido uma perda também, sim? E a imperial que bebi na esplanada da outra banda, a moeda que pus nos binóculos... Exacto, interrompeu-me ele, tudo isso foram perdas, despesas, dinheiro que podia ser poupado, talvez com menos algumas viagens possamos tornar este vermelho em verde. Verde é bom? Verde é óptimo, retorquiu o senhor das finanças, visivelmente satisfeito por eu estar, por fim, a entender. E talvez haja melhores coisas em que gastar o dinheiro, vejo por exemplo que quase não tem despesas em medicação, um senhor da sua idade certamente... Não, foi a minha vez de interromper, estou rijo como um pêro. Acho que se a minha médica estivesse aqui connosco talvez se sentasse do seu lado, ela também tem lá as máquinas de calcular dela, mas prefiro tomar o ar salgado das minhas viagens de barco. Deixe lá que nem sempre tenho... despesa, quando me vou assim medicar, tem vezes que passeio só pela areia e a minha visita lá à outra margem se faz só com os estes meus olhos. Olhe, continuei eu, outra coisa que não perdi, a visão, meteu isso aí nos ganhos? O homem olhou para mim exasperado mas insistiu, gabo-lhe a paciência, ouça, isso não conta... Ah, também isso, interrompi novamente, também ouço muito bem ainda, seria para mim uma grande despesa não poder ouvir o fado. Porém ouvi dizer que quem não vê, ou não ouve, tem tendência a apurar os outros sentidos, acho eu, que não percebo nada disto, há um financeiro qualquer que sempre nos dá aquilo que tira, não de igual forma, isso seria monótono, uma perda... de tempo. Houve algo no que eu disse que pareceu esclarecer, de algum modo, o senhor das finanças. Você não pode colocar tudo nas mãos de Deus, disse-me ele, Deus?, perguntei. Sim, esse financeiro de que fala, Deus até lhe pode ter dado a visão e a audição mas... Não estava a falar de Deus, cortei eu, ou talvez estivesse, mas enquanto não souber se existe, quem é, poupo o tempo de me ocupar com essas perguntas e deleito-me com as respostas. Vêem-se do barco, sabe, ou nele, conforme a disposição, descobrem-se na areia, vislumbram-se dos miradouros. A face do homem era de derrota, de desistência. Então eu prossegui. Dizem-me pouco esses números, sabe. A sua máquina não lhe poderia dizer o número de horas que estive no barco, que passeei pelo areal, que olhei lá do topo da colina, nem eu, para ser honesto, e o ponto é esse. Tão pouco contei o prejuízo, como já reparou. Uma vez li num jornal que apenas uma ínfima parte da água do nosso planeta é potável, o senhor saberá certamente os números, as percentagens, e por certo se assustou com eles quando os leu. Para si, foi só prejuízo. A mim lembrou-me a sorte de num ápice ter água doce a correr de uma torneira, essa água que você tem aí nos gastos e lembrou-me, a mim que sou apaixonado pelo mar, que há muito sal para saborear. Para mim, foi só lucro. O doutor tentou falar mas é curiosa essa circunstância de as equações terem um fim, ao passo que as palavras se desdobram. Eu não sou pobre, nem sou rico, prossegui, eu chamaria rico, e creio ser uma descrição possível, a quem tem o que os outros não têm, pelo menos em igual quantidade. O que eu tenho você tem, a questão é, e perdoe-me o atrevimento de usar expressões tão próprias do seu vocabulário, calcula o quanto pode perder se não observar, se não escutar, se não saborear com atenção, se não tocar... Tal vez conheci uma mulher que parecia uma brisa mas conjuguei com ela todos estes verbos e descobri um maremoto, um incêndio, um furacão. Há muito que ganhar, é aí que quero chegar, muito que descobrir. Mas nada para possuir, aviso-o já e olhe que disto já percebo. Essa mulher, por exemplo, nunca me pertenceu, não a mim, não a ninguém, lá está, como um furacão. Isto, traduzido aí nos seus números, esta brincadeira de tudo o que se soma se subtrai em simultâneo, daria um redondo zero, portanto diga-me como seria possível que eu desse valor às suas equações. Calei-me. O senhor das finanças limitou-se a dizer, fico feliz por si, há mais alguma coisa em que o possa ajudar? Não, retorqui, e não quero roubar mais tempo ao caro doutor, ainda que o tenha bem mais que eu, nem às pobres almas que penam nas salas de espera. Se calhar de caminho ensino-as a tirar maior proveito desse tempo em que só esperam, está visto que o senhor dessas contas percebe pouco, mas não se ofenda; antes de ouvir este pobre velho, não percebia nada. 

terça-feira, 3 de maio de 2016

Pianista

Traz de uma vez as tuas delicadas mãos. Trá-las, pianista, e toca-me, tu sabes as teclas, conheces as cordas. Repara, sou um piano selvagem. Livre, diriam uns, terão acaso eles visto um piano solto e vivo e que o fosse em simultâneo. Tu sabes a verdade, pianista. Ninguém me ouve aqui, ninguém, mesmo que em vezes o vento venha e me leve os sons. Quem fala do sopro da vida nunca terá, estou certo, sido tocado por quem sabe tocar, por quem, como tu pianista, faz da música um incêndio e fogo de quem a ouve. Vem e arruma-me num quarto, arruma-me nas tuas mãos, sobretudo arruma-me as notas. Tenho todas as que há no mundo e são todas tuas, verás esse mundo, prometo-te. Eu enfim verei contigo. E todos nos ouvirão, pianista.

domingo, 1 de maio de 2016

Miragens

Quanto mais te quiser ver, mais tenho que fechar os olhos. Aprendi há muito, sabes, a perceber o sonho pelo que ele é. Fontes de água que se faz gás, paisagens que se confundem e se revelam miragens. Então, se te vejo, cerro os olhos. Claro está que sei logo que és gás, que és miragem. Que mais poderias ser? Contudo, fecho os olhos. É que, sabes, sou já também capaz de me deixar acelerar as batidas pelas mentiras que o sonho traz. Porque não? Tentar beber a água, tentar ver as paisagens, o mar, tentar sentir-lhe o aroma. Sem nariz, sem boca, só de olhos bem cerrados e orante a uma noite que mente, sim, todavia fá-lo tão bem... Sei tudo isto de tal forma que não me importa a manhã, para que quero esse sol tedioso que sabe somente mostrar-me o que é e o que está, incapaz de me trazer a maresia que eu conheci um dia. De manhã tudo é real, sabes, mas esta água que não se esfuma, tão pouco me mata a sede.